quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Cabelo branco

"Prepare-se para ganhar muitos fios de cabelo branco".
Foi mais ou menos isto o que disse meu pai quando lhe falei pela primeira vez sobre meus planos de separação, ainda no primeiro semestre. Não disse apenas isto, é claro. Também me contou da dor, da angústia, da sensação de futuro estilhaçado que envolve episódios como esse (pelo menos as duas separações vividas por ele, hoje em seu terceiro casamento). Sugeriu que eu tivesse calma, o máximo que conseguisse, para costurar as decisões de forma serena, sem precipitação. Alertou-me para o sofrimento que viria, independentemente de ser minha a iniciativa: quem deixa, ele lembrou, convive não apenas com a tristeza do fim, mas também com um desconfortável sentimento de culpa e a persistente hipótese de ter cometido um equívoco.
Cheguei a sair de casa naquele mês. Passei uns dias viajando, mas voltei dali a duas semanas, disposto a insistir. Era dia dos namorados. E a difícil conversa de quatro horas mostrou que não caberia a mim encerrar um casamento que ainda não estivesse encerrado. O sal das lágrimas nos lábios unidos, embora trêmulos, indicavam um amor vestigial, aflito como náufrago a lutar contra as ondas, mas ainda vivo.
Menos de quatro meses depois, saí novamente de casa, agora para valer.
Não sei explicar o que me motivou a escrever sobre isso em meu último post do ano. Talvez o fato de não ter mencionado esse assunto antes, o que torna minha separação uma novidade para muitos. Talvez porque me separar tenha sido, entre todas as coisas, a mais representativa de 2009, sem dúvida o ano mais difícil da minha vida. Talvez porque, daqui a algumas horas, eu passarei meu primeiro reveillon sem a Aline após dez anos inaugurados em sua companhia. Namoramos ao longo de onze anos e, salvo engano, o único reveillon que estivemos separados foi o primeiro, de 1998 para 1999, quando ela estava em Londres e eu, na Ilha de Marajó (PA). Talvez, tenha escolhido escrever sobre isso porque o maior dos pedidos que farei ao romper 2010, com minha carapinha embranquecida, é para que sejamos muito felizes nessa nova etapa, com coragem para trilhar novos caminhos, coerência para transformar desejos em realizações e, por que não, humildade para voltarmos atrás e corrigirmos o manche se necessário.


Aline e eu nos casamos em março de 2004, após cinco anos e meio de namoro. Quem foi à cerimônia conta que estávamos radiantes, leves, sorrindo o tempo todo, sem nada da tensão que, muitas vezes, deixa os casais duros e apreensivos.
Sorríamos, e parecíamos fluir em consonância com a cerimônia. Minha irmazinha Amanda, com quatro anos, cismou com um violinista que ficou plantado à porta da capela e teve de ser rebocada por Helena, a outra daminha de honra, no trajeto até o altar. Padre Filinto, amigo de longa data, conquistou a plateia ao ler os dez mandamentos do casal, com coisas como "os dois nunca devem irritar-se ao mesmo tempo" e "se alguém deve ganhar a discussão, deixe que seja o outro". Chico, padrinho do noivo, leu o que o Apóstolo Paulo escreveu em carta enviada aos coríntios, possivelmente a maior verdade registrada por ele: sem o amor eu não seria nada. Entramos na festa ao som de "I say a little prayer" e trocamos a valsa por uma música de dançar coladinho (Aline certamente vai lembrar que música era), perfeita para inaugurar a pista. Passamos o resto da noite no Hilton e seguimos para Paraty na tarde seguinte.
Quando começamos a namorar, cinco anos antes, cursávamos o segundo ano da faculdade - eu, de jornalismo; ela, de arquitetura. Numa cidade (universitária) com milhares de alunos, fomos nos conhecer em um grupo de teatro que acabava de ser montado. Cartazes impressos em papel A4 foram espalhados pela USP com o intuito de convocar aspirantes a ator, com ou sem experiência, e lá fomos nós, estranhos um ao outro. Eram mais de trinta atores nos primeiros ensaios. Sobraram sete ou oito, incluindo o futuro casal. Fui reparar na Aline durante os ensaios da segunda peça que montamos, na qual ela vestia uma camisola preta e modelava os cílios com um curvex. Eu jamais tinha visto aquele instrumento e fiquei impressionado ao vê-la, no camarim, preparando-se para entrar em cena. Eu tinha 18 anos, era imberbe e me sentia um menino. Aos 21, ela era um mulherão.
Amei muito esse mulherão. Aline foi minha primeira mulher, na concepção civil e também na concepção sexual do termo, e uma enorme referência para que eu pudesse me tornar o homem que eu me tornei. Recentemente, ao contar da separação para uma pessoa, ouvi a seguinte pergunta: "Por que não deu certo?" Devo ter ficado quieto durante um minuto. Não tanto porque não tenho resposta, mas principalmente porque me pareceu haver algo de errado na questão. "Mas deu certo", foi o que respondi. Deu muito certo por dez anos, certamente os melhores dos trinta que vivi até hoje. O chato, nessa história, é saber (ou desconfiar) que os próximos dez seriam muito diferentes dos dez que se passaram. E se não fomos capazes de preservar a alegria, o fascínio, o encantamento e a paixão, espero saber preservar as melhores lembranças. Foi Drummond quem escreveu, no poema Memória, do livro Claro Enigma, de 1951:
As coisas tangíveis,
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
A propósito, ontem, ao me olhar no espelho depois do banho, notei dois cabelos brancos em meu peito. Eu já havia me acostumado à profusão de fios grisalhos na cabeça e até me conformara com as alvas pinceladas na barba. Mas, no peito? Já é demais. Alcancei uma pinça na gaveta, mirei bem o maior dos cabelos, aproximei a ferramenta com cuidado, agarrei o maldito... e desisti de puxar. Deixa os cabelos brancos aí. Se eles de fato significam algo além do galopar da idade e da subsequente redução na taxa de melanina, que fiquem aqui comigo, como tatuagens, a testemunhar os altos e baixos da minha própria história.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

É só teimar (ou de como a pré-estreia do filme do Lula virou palanque)

O Presidente da República assistiu pela primeira vez, no sábado (28 de novembro), à versão definitiva do filme Lula, o filho do Brasil, que entra em cartaz a partir de 1º de janeiro. Acompanhado pela primeira-dama Marisa Letícia (ao braço direito) e pela pré-candidata à presidência Dilma Rousseff (ao braço esquerdo), Luiz Inácio Lula da Silva foi a São Bernardo do Campo prestigiar a exibição, organizada pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC com apoio da prefeitura e de empresas como a rede de cursos profissionalizantes Microlins e a marca de cosméticos Embelleze. Posou para fotos, acenou para uma plateia de quase duas mil pessoas – metade dela formada por sindicalistas e ex-sindicalistas – e, numa rara inversão de papéis, cumpriu ele mesmo o beija-mãos oficial da noite, cumprimentando, um por um, os atores e produtores do longa-metragem.


Emoldurado por um séquito de ministros e parlamentares da base aliada, Lula emocionou-se diante das cenas que retratam a morte e o enterro de sua mãe, Eurídice Ferreira de Mello (a Dona Lindu), evitou a imprensa e, prestando-se à insólita função de anfitrião-em-exercício do evento, jogou por terra as tentativas pregressas, algo quixotescas, de se disfarçar o uso político da fita. Pelo menos ali, no Pavilhão Vera Cruz – um complexo, implementado nos galpões da antiga Companhia Cinematográfica Vera Cruz, que reunirá cursos de profissionalização em audiovisual e incubadora de empresas ligadas ao setor –, funcionários do Palácio do Planalto e integrantes do PT ditaram as regras e assumiram a tarefa de transformar em palanque o que deveria ter sido apenas uma pré-estreia.

O primeiro estranhamento surgiu na semana anterior, quando se verificou que o credenciamento de jornalistas para a cobertura da noite estava sendo feito exclusivamente pelo setor responsável do Palácio do Planalto. O filme, afinal, é uma iniciativa da produtora LC Barreto ou do Governo Federal? Como justificar o fato de funcionários lotados no Executivo Federal (e pagos pelo contribuinte) dedicarem parte de seu expediente às tarefas de receber pedidos de credenciamento, conferir dados, formatar planilhas e encaminhar crachás com a rubrica verde-amarela a um evento em São Bernardo do Campo promovido, oficialmente, por uma entidade de classe autônoma sob patrocínio da iniciativa privada? É praxe, no entanto, submeter à equipe do protocolo oficial a tarefa de controlar, por motivo de segurança, o fluxo e os nomes das pessoas presentes a todas as solenidades públicas contempladas com a visita de Lula, mesmo quando não é o Planalto que as promove. Estranho costume em uma democracia.

O segundo estranhamento, que apenas amplificou os efeitos do primeiro, foi notar que todos os convidados recebiam de uma hostess, à entrada do Pavilhão Vera Cruz, um pequeno broche amarelo, ilustrado com um perímetro estilizado do mapa do Brasil e as iniciais PR, de Presidência da República, em letras maiúsculas. Seu uso era obrigatório no interior do galpão. “Coloque essa identificação e fique à vontade”, ela disse, indicando a esteira de raio-X e a equipe responsável por revistar as bolsas e pastas dos espectadores. “Deve ser PR de 'pé rapado'”, brincou um sindicalista, fazendo troça da própria insignificância numa noite em que os holofotes estariam direcionados, como de hábito, ao filho do Brasil.


O terceiro estranhamento surgiu ao dar-se início aos discursos, pouco antes das 21h, mais de uma hora após o horário marcado para o início do filme. Quando se imaginou que os realizadores do longa agradeceriam a presença e desejariam a todos bom divertimento, foi o prefeito Luiz Marinho, petista e ex-ministro de Lula, quem subiu ao palco. É verdade que a prefeitura aparece nos banners como apoiadora do evento. Mas franquear a ele o microfone e a prerrogativa de abrir os trabalhos, horas depois de ter inaugurado um espaço municipal dedicado à promoção dos direitos das crianças – batizado estranhamente com o nome da mãe do presidente, Eurídice Ferreira de Mello – pode ser interpretada como uma opção de caráter duvidoso. Fiel aliado, Marinho agradeceu a presença do cinebiografado e, na mesma frase, prontificou-se a cumprimentar a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, no que foi acompanhado por uma salva de palmas. Com a nítida sensação de missão cumprida, discorreu sobre os feitos da administração petista no campo da cultura, explicou o projeto que está sendo implementado no Pavilhão Vera Cruz e passou a palavra a Sérgio Nobre, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos.

Responsável pelo quarto estranhamento, Nobre forçou a amizade ao comparar o filme de Fábio Barreto a duas produções internacionais, as cinebiografias de Gandhi e Mandela, sugerindo a semelhança entre os líderes da Índia e da África do Sul com a do “menino de Garanhuns”. “O presidente já trouxe a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016 para o Brasil; quem sabe não traz um Oscar também”, completou a exaltação, provocando uma risada afetada e milimetricamente calculada no diretor do filme.

Foi ele, Fábio Barreto, o autor do quinto estranhamento. Em seu discurso, breve e preciso, dedicou o filme a Dona Lindu, mãe do presidente, e se prontificou a soluçar no momento exato, levando as mãos aos olhos e incorporando uma pausa providencial em sua fala, motivada pela súbita emoção que sentiu ao se lembrar de uma senhora do Nordeste que ele sequer conheceu. Por fim, o que não é de se estranhar, o produtor Luiz Carlos Barreto leu ao microfone um texto que teria preparado para ocasião, no qual afirma: “Esse não é um filme político. É a história da família Silva (...), sua coragem e superação”. Será?

Em tempo: O filme não é grande coisa em matéria de cinema e deve provocar, tanto nos admiradores quanto nos detratores de Lula, uma sensação de desperdício, de que ainda está para surgir um filme à altura do personagem. Sua estética é demasiadamente fragmentada, tornando-se muitas vezes uma sucessão mal ajambrada de episódios, costurada num ritmo acelerado que sofre com a ausência de clímax e com a melodia quase ininterrupta (e maçante) de violinos e violoncelos. Há equívocos históricos, como a cena que mostra os diretores do sindicato dormindo no chão na cela do Dops em 1980 (eles dormiam em camas de concreto com colchonetes) e passagens mal conduzidas (como a da transformação do Lula alienado no Lula engajado). “Gostei do filme, mas algumas coisas estão mal contadas ali”, disse Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos na virada dos anos 1980 para os anos 1990 e atual deputado federal pelo PT. “O momento em que o Lula chora ao colocar o cargo à disposição não aconteceu na igreja logo após a greve de 1979, mas em uma assembleia no sindicato, depois de Lula passar quase um ano sendo chamado de traidor”, afirma ele, jovem metalúrgico na ocasião, citando uma cena do filme.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A marvada do timão

Dia desses, escrevi um post intitulado "porco e tricolor" e, em razão do título, despertei algum estranhamento em meus amigos - eles não se conformavam, à primeira vista, com o fato de eu escrever sobre futebol. Logo eu, que, embora saiba as regras de impedimento, sou um alienado em matéria de escretes, arqueiros, líberos e corners. O post da discórdia, no caso, não tinha nada a ver com futebol. Era sobre torresmo, delicioso quitute feito de porco e que, por definição, tem de apresentar três cores distintas, em faixas bem definidas: a da carne, a da gordura e a da pele. Os estrilos da oposição me deixaram cabreiro. Pus-me a cogitar uma estratégia qualquer que me permitisse driblar a ignorância futebolística e, ao menos uma vez, postar qualquer coisa sobre a maldita paixão nacional. Eis que, sorte minha, surgiu há pouco uma excelente desculpa para que eu, finalmente, possa escrever um post que não apenas tangencia o gramado como funciona como complemento para o querido torresmo homenageado semanas atrás. Acaba de chegar ao mercado a cachaça A Corinthiana, veja você.


Fazia algum tempo que a nação alvinegra não encontrava um bom motivo para comemorar. Depois de um primeiro semestre vintage, em que o time do Parque São Jorge trocou o amargo sabor da segunda divisão pela doce conquista do Campeonato Paulista e da Copa do Brasil (garantindo antecipadamente a vaga para a Libertadores), o Corinthians já se preparava para terminar o ano jururu, sem nenhum título em disputa e nenhum grande jogo pela frente. Nem escândalo - coisa que faz tanta falta quanto êxitos em campo. A poucos meses de 2010, quando o Timão completará um século de glórias e fracassos, surge o bom motivo esperado. Chega às quadras da Gaviões, diretamente de Itatiba (SP), onde é produzido, e promete antecipar o carnaval para dezembro. Chega engarrafado, em três versões distintas, conforme o tempo de amadurecimento e a madeira utilizada nos tonéis: a “prata” descansa por seis meses em dornas de jequitibá-rosa e custa R$ 30, a “ouro” amadurece por um ano em tonéis de carvalho e custa R$ 45, e a “premium” envelhece por cinco anos, também em carvalho, e vale os R$ 65 impressos na etiqueta.
Provei a premium, a mais pó-de-arroz das pingas do clube. E, considerando o sabor da malvada, arrisco afirmar que o pessoal do Parque São Jorge já tem uma ótima alternativa profissional, eficaz e melíflua, para o caso de o esquadrão em campo continuar trançando as pernas no ano que vem.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Um porreta

Fui ao Dops. Ou melhor, ao Memorial da Resistência, belo pavilhão de exposições inaugurado há alguns anos no mesmo prédio onde funcionou o Departamento de Ordem Política e Social, na Praça General Osório, até meados dos anos 1980. Fui ao Dops para conferir a mostra em homenagem a Carlos Marighella, assassinado pela repressão política em 4 de novembro de 1969, 40 anos atrás.


Negro, baiano, filho de um imigrante italiano com uma descendente de escravos, Marighella nasceu em 1911 e aproximou-se do comunismo ainda na juventude, quando deixou a faculdade de engenharia civil para se dedicar à militância em tempos de colunas e revoluções. Importante quadro do PCB, foi preso e torturado pelo Estado Novo, detido na ilha-presídio de Fernando de Noronha e eleito deputado pela Bahia. Nos anos rebeldes, rompeu com o Partidão e optou pela clandestinidade para se tornar o maior nome da guerrilha urbana no Brasil, o inimigo-público número 1 da ditadura.


Desempenhando o papel de líder máximo da Ação Libertadora Nacional, a ALN, Marighella foi perseguido durante meses e executado naquela noite de 4 de novembro, enquanto cobria um “ponto” (um encontro clandestino com aliados), na altura do número 800 da Alameda Casa Branca, no Jardim Paulista. Na tocaia montada pela polícia, Marighella foi alvejado por tiros à queima-roupa. Na farsa montada pela polícia, Marighella teria resistido à voz de prisão e revidado ao cerco. No circo montado pela polícia, seu corpo foi encontrado numa posição impossível, oposta à versão oficial, estendido no banco traseiro de um fusca e com os pés para fora.



Sem Marighella, a ALN manteve seu projeto. Continuou denunciando a violência do regime e promovendo atos que contribuíssem para jogar alguma luz sobre a escuridão do cárcere (e a escuridão daquele período). Atuou no sequestro do embaixador americano Charles Elbrick a fim de libertar companheiros que haviam sido presos e torturados (alguns correndo risco de morte), o que despertou os instintos mais perversos de Sérgio Paranhos Fleury e sua gangue. Pouco a pouco, a ALN – e a guerrilha, em geral – foi perdendo seus quadros (cada vez mais jovens e inexperientes) para o exílio, para o silêncio forçado, para a masmorra, o pau-de-arara, a cadeira-do-dragão, o suicídio e o desaparecimento. Com o governo Médici, os anos rebeldes viraram anos de chumbo e, em 1973, qualquer possibilidade de resistência armada estava praticamente encerrada.


Passados 40 anos de sua morte, Marighella recebe homenagens de mártir e é aclamado como herói por intelectuais, como Antonio Candido, e “analfabetos”, como o presidente Luiz Inácio da Silva (só para empregar, com a conotação irônica e bufa que a expressão exige, o termo grosseiro adotado na mesma semana por outro baiano, que jamais será lembrado como exemplo de coerência). Compreendido como baluarte da liberdade e da soberania popular, Marighella recebeu, na noite do último dia 4, na Câmara dos Vereadores, o título de cidadão paulistano (projeto de lei de Ítalo Cardoso aprovado na Casa). No Rio, manifestantes pediram que o nome da Praça Marechal Floriano, conhecida como Cinelândia, fosse trocado para Praça Carlos Marighella. Sua biografia, já celebrada em Batismo de Sangue, de Frei Betto, vai virar novo livro, pelas mãos de Mário Magalhães, e filme, pelas mãos de Isa Grinspun. Sinais dos tempos. Feliz o país que sabe reparar seus erros e devolver a vida a filhos que enterrou precocemente. Mesmo que o faça 40 anos depois.

sábado, 31 de outubro de 2009

Porco e tricolor

Um clássico.
De lotar arquibancada e inspirar altivas discussões de boteco.
Um clássico.
De pôr saliva na boca e brilho nos olhos.
Um clássico.
Disposto a provar que é possível ser ao mesmo tempo porco e tricolor.
Assim é o torresmo, essa delícia confeccionada com apuro e técnica para deleite da torcida.


Clássico da baixa-gastronomia, parceirinho-cem-por-cento da cachaça e da caipirinha, o torresmo é o milagre da barriga do porco.
Integra o time das gratas surpresas culinárias, como o ossobuco - tenra iguaria nascida da canela do boi - e a pipoca - saboroso e lúdico rebento forjado a partir de um grão de milho seco e miúdo.
Assumi, no mês passado, a calórica tarefa de experimentar alguns dos mais famosos torresmos de São Paulo a fim de eleger o melhor da categoria. Isso é o que eu chamo de Campeonato Paulista, melhor que qualquer concurso de miss.
As informações colhidas durante o trabalho de campo foram compiladas e reunidas em resenha publicada na edição de hoje da revista Época São Paulo, intitulada "O melhor de São Paulo", que fica nas bancas até o dia 6 de novembro. Para a imagem acima, feita pelo fotógrafo Dulla, posaram os artilheiros do ano, os capitães da malandragem, os ganhadores do troféu - coquetes de invejável sex appel e caloroso gingado a rebolar, sedutoras, entre as mesas do Mocotó.
O bom torresmo tem três cores bem definidas. Aprendi isso com minha amiga Dani Doneda, que ouviu a expressão de sei lá quem. São-paulino de fé, embora mais "frôxo" do que "rôxo", gostei da indicação e passei a investigar os subterfúgios de cada uma das cores ali presentes, divididas em três faixas paralelas, como as bandeiras da Itália ou da França.
A primeira etapa do torresmo é a carne. Avermelhada, deve ser macia e generosa, sem exageros de sal, e desfiar a cada dentada. A segunda banda da iguaria é a gordura. Alva, deve ser aerada e leve, dissolver-se na boca sem criar ranço nem grudar nos dentes, o que costuma acontecer em restaurantes menores, pouco experientes na arte de acertar a temperatura da frigideira. Finalmente, a linha da pele deve estalar na boca, pururuca, esbanjando crocâncias e criando uma profusão musical de trecs e rocs: espetacular queima de fogos no céu da boca. Tudo isso em pequenas proporções, é claro, uma vez que o torresmo é primo-irmão dos hai-kais, aqueles poeminhas japoneses de apenas três versos e sintética eloquência, feitos para serem abocanhados de uma só vez.
Com o perdão do trocadilho, tomara que o porco tricolor funcione como aperitivo (acepipe?) para a bela edição de novembro da revista, que o bom glutão não deixará de conferir.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

O príncipe e o mendigo

“As crianças devem ser muito indulgentes com as pessoas grandes” (Antoine de Saint-Exupéry)

Sabe aquele olhar terno e contemplativo que os humanos costumam encomendar toda vez que veem um bebê ou um cachorrinho simpático (a lhes sorrir latindo)? Normalmente, esse olhar vem acompanhado de um sorriso de aprovação, uma leve inclinação diagonal da cabeça e um “oh” prolongado e grave, meio gutural, meio chorado. Pois é esse mesmo olhar que a imagem do Pequeno Príncipe me provoca, até hoje, bem como as aquarelas do autor que ilustram a obra e alguma epígrafe livre, conferida aqui e ali, em canecas, cartões e “spams” amanteigados. Um moleque blasé de cabelos trigueiros, caga-regras e melindroso, inventado por um piloto cheio de manias para se tornar sucesso editorial focado no público infantil, teve êxito, veja você, na majestosa tarefa de me cativar – a mim e a uma pequena multidão de misses, incluindo aquelas que jamais leram uma linha de Saint-Exupéry (e só o conhecem por ouvir dizer).


Pois fui à Oca visitar o Pequeno Príncipe, recém-empossado rei e cacique do Ibirapuera. E não é que bateu aquela nostalgia boa? Encontrei a rosa, a raposa, o baobá. Passei uns bons minutos imaginando como seria o meu carneirinho caso um guri se aproximasse, de capa e mosquete, e me pedisse para fazer um desenho. Revolvi o interior dos meus mais íntimos vulcões e tive calafrios ao imaginar a fúria que moveria uma jibóia a engolir um elefante. Eu, que ainda criança me aprendi responsável por aqueles que cativasse e, depois de adulto (a maturidade não pede licença nem aceita recusa), aprendi que os espinhos não são capazes de tornar rosa alguma mais forte (ou menos carente), vislumbrei pela primeira vez a obra em sua dimensão histórica, temporal e, principalmente, sua íntima relação com a vida e o pensamento de seu autor. Gostei do que vi, com os olhos e com o coração.
***
Eram quatro horas da tarde quando deixei o Ibirapuera e estacionei o carro em uma travessa da Avenida Ipiranga, logo abaixo do antigo Hilton, para almoçar e tomar uma cerveja no Bar Dona Onça, no térreo do Copan. Foi só fechar a porta que um homem se aproximou, trazendo na face um olhar árido e profundo – bem diferente daqueles que costumam vir acompanhados de um sorriso de aprovação e de um “oh” prolongado e grave, meio gutural, meio chorado, de quando encaramos um bebê ou um cachorrinho simpático.
- Deixa dois reais que tá tudo certo – ele disse.
- Deixo na volta – respondi, acionando o alarme e virando as costas, convencido de que aquilo era a coisa mais normal do mundo.
Definitivamente, não foi a resposta certa, ou pelo menos não era a resposta que ele esperava.
- A gente não trabalha desse jeito por aqui – o homem avisou, virando as costas, aparentemente conformado.
- Como é?
- Esse jeito, de pagar depois...
Carregava na mão direita um copo de plástico de 500ml com a logomarca de uma empresa de refrigerantes estampada do lado de fora e meia dúzia de moedas a tilintar do lado de dentro.
- Eu não tenho nada agora – insisti. – Dou na volta, sem erro.
- Não me responsabilizo.
Aquilo era uma ameaça? Havia um alerta naquela voz? Um tom ameaçador? Não percebi. Ou percebi e, de cima da minha arrogância, um pouco despertada pela ousadia lacônica do principezinho caga-regras, não dei bola. E, faminto, entoei para mim mesmo um “então-tá” paciente, caminhando em direção ao bar, sentindo-me confortável graças ao movimento de pedestres pela redondeza – e de uma viatura policial que descia a Ipiranga naquele exato momento. Pude perceber os músculos retesados do flanelinha, e um vagar de olhos que denunciava urgência, quiçá paranóia, mas não rebeldia, raiva ou impulso destrutivo. A gente falha ao subestimar o poder estimulante da humilhação e da vergonha. A gente falha, também, ao subestimar o poder estimulante da fissura e da fome. “A fome tem que ter raiva pra interromper”, cantaram João Bosco e Aldir Blanc, certa feita, menos distraídos do que eu.
***
Quando voltei ao carro, duas horas depois, encontrei o para-brisa todo trincado, compondo um belo espiral (do tempo?).


Sorri. Um riso cansado e rendido, como quem pensa: “eu sabia!”. Um riso prostrado, de quem se percebe incapaz de desvendar o que circula na mente turva de um nóia sem perspectiva ou prognóstico. De um bar em frente, ébrios desalinhados me encaravam. Eles pareciam entusiasmados, à espera do início do espetáculo. Queriam ver minha reação. Queriam me ver esmurrar o capô, emputecido, e esbravejar para a rua vazia e também para eles. Não fiz nada. Entrei no carro, agradecido pelo fato de o homem do copo de plástico ter poupado meus pneus, e parti. “As crianças devem ser muito indulgentes com as pessoas grandes”, entoei, pela última vez.


Em quinze minutos, começaria, em um Gemini grisalho, o filme ao qual planejava assistir. Não fazia sentido perder tempo com picuinhas ou revolta. Eu intuía que aquilo me custaria quase R$ 300. E sabia que nenhum centavo seria revertido à nobre causa do irritado flanelinha. Sua paga, imediata e febril, foi a gloriosa sensação de vingança que deve ter jorrado em suas veias, cumprindo o papel de entorpecente e fazendo-o extravasar. Quando me acomodei na poltrona, a sessão já havia começado. Na tela, um músico genial, um compositor monstruoso, um marido apaixonado, um pai generoso, um guitarrista sempre agitado adaptava-se às circunstâncias e transformava a cadeira de rodas em pedestal. “A arte de viver da fé”, sussurrou Herbert Vianna em meus ouvidos, como se me afagasse os cabelos e me fizesse ver para além da janela, para além do para-brisa estilhaçado, para além do meu asteróide B612. Por certo, meu querido Pequeno Príncipe concordaria com ele. “É preciso que eu tolere duas ou três lagartas se quiser conhecer as borboletas”, arriscou Saint-Exupéry em seu livro.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Defesa


Contribuição de Longus para o Tudo Cabe:
"Pois jamais existiu nem há de existir quem possa se defender de amar, enquanto houver beleza no mundo e o poder de vê-la."
(A frase é um excerto de Dafne e Cloé, o visionário romance escrito no século II por um grego de nome romano. A escultura é de Jean-Pierre Cortot, foi feita em 1824 e retrata o casal criado por Longus.)

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Intermezzo polifônico

Com fotos de Alex Almeida

Um clarinetista cruza, apressado, o pórtico da antiga estação Júlio Prestes. Traz à mão o estojo, negro e rijo, como porta-jóias avantajado, proporcional ao tamanho do instrumento. Prestíssimo. Um trombonista percorre o saguão, pisando o ladrilho hidráulico como quem marca o ritmo de uma ária. Traz o metal engatilhado, pronto para o combate. Agitato.


Um violoncelista arrasta um armário colossal, sobre rodas, e busca espaço entre cadeiras e estantes até se acomodar no canto direito do palco. Allegro con brio. Uma contrabaixista, de calça jeans e cabelo em rabo, larga a sombrinha à sombra do instrumento, onde seus pés quase tocam o chão. Andante grazioso.


Faltam quinze minutos para o início do ensaio. É hora de desvelar violas e violinos, trazer à tona tubas e trompetes, submergir em um oceano sinestésico forjado em escalas e arpejos. Na intimidade, a música se agasalha em simbolismos: um santo salta do pau oco, uma harpista bate na madeira, um luthier estala os dedos antes de ajustar a palheta de um clarone para que o sopro se transforme em vida.


Vida sustenida, composta em breves e semibreves, mínimas e semínimas, colcheias e semicolcheias, fusas e semifusas.


À guisa de aquecimento, cada músico aninha-se em um canto (da platéia, do palco ou da coxia) e retoma o aprendizado da véspera. É evidente a predileção por frases ainda obscuras, compassos de sustentação precária e digitação imprecisa. Como atleta de quadra ou piscina, o músico em treinamento concentra-se nos pontos fracos e repete a mesma melodia duas, três, doze vezes, até dirimir falhas e fraquezas.


Em instantes, a Sala São Paulo veste-se de sons aleatórios: timbres dispersos e cadências urgentes, que se medem e se entrelaçam, feito pulseira de miçangas.


A polifonia se dissolve no momento em que o regente pisa o tablado. O caos exige reparos. Conserto para haver concerto. Agora, apenas o silêncio ecoa: um silêncio pleno, absoluto, instrumento primordial sem o qual não existe música. Nem ensaio.


À noite, os feiticeiros voltam transfigurados, trajando longos e fraques.

Casais sexagenários vestem óculos de leitura para conferir o programa. Executivos engolem um crepe de queijo e uma taça de cabernet sauvignon e correm ara ocupar seus lugares. Grupos de senhoras ajustam o penteado, indiferentes ao perfume de laquê, e cumprem, sempre juntas, a rotina ancestral de conferir as récitas da Osesp toda quinta-feira. Jovens músicos observam da plateia e sonham com a possibilidade de, um dia, transpor a ribalta e tocar no mesmo palco.


O terceiro sinal ressoa. Músicos se preparam. Uma batuta ergue-se para além do silêncio e desce tenaz. Começa o espetáculo.


//As fotografias que tecem esta crônica foram feitas por Alex Almeida nos dias 4 e 9 de setembro e compõem o ensaio Primeiros Movimentos, publicado na edição de outubro da Revista Época São Paulo.//

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Astrolábio

"Longe demais do cais do porto,
perto do caos"


segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Domingo, 4 de outubro

O poeta está triste.


Tira a roupa, melancólico.

Veste o pijama, cabisbaixo.

Deita macambúzio.


Não há ninguém ali.


Solitário em sua cama,

pela primeira vez em tantos anos,

o poeta se encolhe.


No vazio do quarto,

em sua cama devoluta,

convida seus fantasmas

para virem deitar com ele.


Fantasma de poeta é bicho esquisito:

rouba todo o edredon,

acomoda-se em diagonal,

fala enquanto dorme...

chega a compor estrofes,

em versos metrificados,

entre um suspiro e outro.


Mas não ronca.


Cercado de fantasmas,

o poeta perde o sono.

De olhos mareados,

o poeta perde a calma,

Sozinho em sua cama,

o poeta perde a fé.


Levanta, sem fazer barulho,

fecha a porta em silêncio,

toma um copo d’água

e se estende no sofá.


O sofá também está vazio.

Repleto de fantasmas.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Lie to me

Tenho visto vários anúncios da série Lie to me, exibida pela Fox, publicados em jornais e revistas. O olhar circunspecto do protagonista, ao qual nada parece escapar, nos fita da página impressa. E absorve. Como se nos traduzisse de cabo a rabo em poucos segundos.


Não conheço a série. Grosso modo, nem sei ao certo do que trata. É a frase em letras grandes, e não propriamente a produção televisiva, que me chama atenção e intriga: "Minta para mim". Na maioria das vezes, o título é sublinhado por uma rápida linha-fina: "A mentira mostra a sua cara". Lembro imediatamente do verso-manifesto berrado por Cazuza no final dos anos 80: "Brasil, mostra a sua cara, quero ver quem paga pra gente ficar assim". E não consigo disfarçar um sorriso, de hilária indignação, ao substituir a palavra "Brasil" pela palavra "mentira" como se ambas fossem bloquinhos de montar, cambiáveis e equivalentes. Como se "Brasil" e "mentira" fossem sinônimos. Será que o Brasil, este colosso, tem as pernas curtas?
Mentira é coisa chata, coisa triste, coisa que nos emputesse ao ouvir e, principalmente, ao dizer. Pelo menos a mim. Tenho pensado no assunto. Recentemente, li um microconto assinado por Samir Mesquita (www.samirmesquita.com.br) e publicado em um microlivro nada convencional chamado Dois Palitos. Em formato de caixa de fósforos, na qual se esconde uma brochura minúscula, o livro tem 50 páginas, cada uma dedicada a um conto com no máximo 50 palavras. O tal conto, que me chamou atenção, diz exatamente o seguinte:


O escritor, ao menos o de ficção, é esse mentiroso compulsivo, esse construtor de castelos etéreis edificados sobre sonhos e ilusões. Escritor, Samir sabe disso. E admite sem rodeios, enquanto eu, aprendiz de feiticeiro, reluto em vestir a camisa. Fiquei incomodado com aquelas palavras. Não quero me considerar um mentiroso. E passei a olhar para dentro. Para dentro e para trás.
Aprendi a mentir recentemente. Talvez por estar cada vez mais próximo da literatura, esboçando agora meu primeiro romance. Ou, talvez, eu tenha percorrido o sentido inverso: a experiência de aprender a mentir teria me habilitado à escrita ficcional, conduzindo-me por esse saboroso caminho de personagens e tramas. A pulga, no entanto, continua atrás da orelha.
Mentir é uma merda. Escrever é uma delícia. Como pode?
Mentir desloca o olhar (envergonhado). Escrever põe brilho nos olhos (ávidos).
Mentir faz o coração tropeçar e perder o ritmo. Escrever devolve ao coração o ritmo, o tom, a intensidade, a intenção.
A mentira é sempre conservadora. Mentimos para preservar - pessoas que amamos, situações, relacionamentos e, acima de tudo, nossa própria imagem. "Mentiras sinceras me interessam" é outro verso eternizado por Agenor de Miranda Araújo Neto, o mestre-Cazuza.
A escrita, por sua vez, é por definição revolucionária - nos permite extrapolar limites, redefinir papéis e forjar o futuro.
Aprendi a mentir recentemente, repito, e não tenho nenhum orgulho disso. Pessoas mentem por medo, por fraqueza, por presunção, por paixão, por comiseração, por vaidade. Mentem para justificar uma falta à escola ou ao trabalho. Mentem para faturar uma garota ou dispensá-la. Mentem para prolongar um casamento em ruínas. Mentem para não sofrer (e para evitar que pessoas queridas sofram tanto quanto elas). Mentem para se desculpar por terem se ausentado de uma festa à qual não pôde ou não quis comparecer. Comigo não foi diferente. Até atendendo a pedidos acabei mentindo, cúmplice na trama rascunhada por companheiros, correligionários, comparsas.
Não quero mais. Solenemente, abdico desse aprendizado, desse dom adquirido. E retomo, aqui, minha sincera opção pela verdade, leal como sempre fui, revolucionária e libertadora como a boa literatura.
Mas continuarei escrevendo...

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Troca de gentilezas

"Ele é viado e fuma maconha". O dono da frase poderia ser um carola de igreja, desses que papam mingau de hóstia no café da manhã. Também poderia ser um desses policiais rudes que fazem bico de leão de chácara em porta de boate e, durante o dia, malham até as orelhas em uma academia de fundo de quintal, doidos para descer o cacete em um larápio qualquer. Mas não: foi proferida por um governador de estado, chefe do executivo sul-mato-grossense, representante do poder Executivo eleito pelo povo e diplomado em solenidade pública perante o Legislativo. O alvo? O ministro do meio ambiente.


André Puccinelli parece ter perdido a razão. Ou, talvez, nunca tenha tido. Reagiu com as gentilezas acima ao ser questionado por líderes do comércio e da indústria local a respeito da recente decisão, conduzida pelo ministro Carlos Minc, de vetar o plantio de cana de açúcar em certas áreas do estado próximas ao Rio Paraguai. Ruralista e defensor dos latifúndios canavieiros - daqueles que acham que o ideal do Brasil é mesmo se tornar um "imenso canavial" - Puccinelli não poupou escatologia ao disparar seus petardos contra o ambientalista. Em seguida, por mais incoerente que possa parecer, ameaçou abusar sexualmente do mesmo ministro: "Se ele viesse (a Campo Grande), eu correria atrás dele e o estupraria em praça pública", afirmou.


Quem tem 30 anos ou mais provavelmente se lembra de uma frase famosa, dita em 1989 por um político com ideias semelhantes às exibidas por Puccinelli, que instruía bandidos a, havendo a necessidade íntima de cometer violência sexual, o fizesse sem colocar em risco a vida da vítima. "Tá com vontade sexual, estupra, mas não mata", eram os termos exatos. Já quem tem menos de 30 anos está cansado de saber que toda manifestação depreciativa em razão de orientação sexual, cor ou credo, entre outros aspectos, é passível de punição penal. Pelo menos na teoria.
Em vez de continuar à frente do governo, fazendo retumbar suas bravatas de menino-macho, talvez fosse hora de o homem da cana entrar em cana, devidamente emparedado pelo Ministério Público e lacrado pelo Supremo Tribunal de Justiça. Triste o país que não leva adiante sua indignação com as habituais afrontas feitas aos direitos humanos, comuns inclusive entre seus dirigentes. Algumas afrontas, a história mostra, estupram e matam.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

O funcionário mais antigo

O metrô de São Paulo completou 35 anos de operação comercial no dia 14 de setembro. Fui à estação Paraíso conferir o palanque armado pelo Governo do Estado para comemorar a data. O povo do palácio dos Bandeirantes está em polvorosa com o assunto. Até o ano que vem, afinal, o metrô promete inaugurar nove estações: Sacomã, Vila Prudente e Tamanduateí, na linha verde, e Luz, República, Paulista, Faria Lima, Pinheiros e Butantã, na esperadíssima linha amarela.


De olho nas eleições de 2010, uma penca de deputados, estaduais e federais, perfilou-se ao lado de Serra e Kassab para aparecer nas fotos oficiais. Dali, todos puderam ouvir quando o mestre de cerimônias chamou ao tablado o funcionário mais antigo ainda em atividade na Companhia do Metropolitano de São Paulo para receber uma homenagem das mãos do governador.
Fiquei entusiasmado com a possibilidade de entrevistá-lo. Em qual setor ele trabalharia? Qual seria o número de matrícula e a data de admissão daquele simpático senhor? Que histórias guardaria do tempo em que o bilhete custava Cr$ 1,50 e toda a malha viária da cidade se resumia aos 7 quilômetros que separam as estações Jabaquara e Vila Mariana, as primeiras a serem inauguradas?
Atravessei a claque para me aproximar do personagem, que já descia pela extremidade oposta à que eu estava. Meio esmagado no meio do público, gesticulava para chamar a assessora de imprensa e solicitar uma entrevista com o cara quando ouvi um diretor do metrô reclamar com uma das responsáveis pelo cerimonial:
- Pô, sacanearam o Tizzle. Ele podia ter falado "um dos funcionários mais antigos", e não "o funcionário mais antigo".
Cheguei mais perto para assuntar. De bloquinho na mão, a moça fez que não entendeu e pediu explicações.
- Ora, o funcionário mais antigo em atividade é o Ernesto Tizzle, você sabe. Ele é do meu departamento. Mas não pôde vir porque está de férias em Natal. Chegou a ser convidado para esse evento, mas já havia comprado as passagens.
Me apresentei ao diretor e perguntei se ele podia me ajudar a entrar em contato com o tal Ernesto, mesmo que por telefone, durante as férias. Mas logo a assessoria de imprensa se acercou da gente e, pelos olhares, notei que havia baixado a censura.
- Não sei, fica difícil, ele está de férias, não tenho o celular...
Voltei para a redação pensando nesse homem. E também no colega que, a pedido da direção ou da gerência da empresa, obriga-se ao papel de se fingir de "mais antigo" a fim de garantir à macacada o benefício dos confetes. Provavelmente, o cara é o segundo ou o terceiro na linha sucessória, membro honorário do conselho dos anciãos. Não precisava ser obrigado a isso...
Um homem é rapidamente esquecido, veja você. Basta sair de férias. O outro vira ícone, é entrevistado, posa para fotos e sai nos jornais. A notícia em primeiro lugar! Ou a campanha eleitoral, dependendo do ponto de vista.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Ótimo pra embrulhar peixe

Contribuição de Mario Benedetti, descoberta ontem em seu belo A Trégua. O parágrafo, aplicado à realidade uruguaia, nos torna menos solitários e surpresos perante o espasmo editorial que sentimos ao ler, diariamente, a Folha, o Estado, o Globo, o JB, o Diário... não necessariamente nesta ordem:
Há dias em que compro todos (os jornais). Gosto de reconhecer suas constantes. O estilo de cabriola sintática nos editoriais de El Debate; a civilizada hipocrisia de El País; a maçaroca informativa de El Dia, só aqui e ali interrompida por uma ou outra alfinetada anticlerical; a robusta compleição de La Mañana, vaquinha de presépio que só ela. Como são diferentes e como são iguais! Entre eles, jogam uma espécie de truco, enganando uns aos outros, fazendo-se sinais, trocando de parceiros. Mas todos se servem do mesmo maço, todos se alimentam da mesma mentira. E nós lemos, e, a partir dessa leitura, acreditamos, votamos, discutimos, perdemos a memória, esquecemos generosa e cretinamente que eles hoje dizem o contrário de ontem, que hoje defendem ardorosamente aquele de quem ontem disseram coisas terríveis, e, o pior de tudo, que hoje esse mesmo aquele aceita, orgulhoso e ufano, essa defesa.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Trinta

Fiz trinta anos no último sábado.


Uma amiga me mandou um e-mail dizendo que a vida começa aos 30. Fiquei indignado: "mas e tudo o que eu vivi até agora, nada disso conta?"
Um amigo, prestes a completar 37, afirmou que 30 é muito melhor do que 20. Segundo ele, aos 30 a gente já tem nosso espaço, já está ganhando algum dinheiro, já fez alguma coisa bacana...
Pensei um pouquinho e, sem querer defender os 20 em detrimento dos 30, disse apenas o seguinte: "aos 30 a gente já definiu um monte de coisas nas nossas vidas; e isso é bom. Mas a busca, a procura, essa permanente descoberta do mundo que marca nossas vidas aos 20, tudo isso é muito bom também."
Um deprimido Renato Russo cantou, certa vez, que havia decidido começar a viver aos 29, com o retorno de Saturno. Definitivamente, não é o meu caso. Tenho vivido há muito tempo (okay, 30 anos não é tanto tempo assim...). Mas curto a ideia de decidir viver a cada dia, a cada segundo.
Começo a viver ao iniciar um post.
Começo a viver ao conclui-lo.
Começo a viver ao iniciar o próximo.
Acho que o mais legal nessa história de fazer anos é a gente saber ter 20 anos aos 20, 30 anos aos 30, 40 aos 40 e assim por diante.
Aproveitar a delícia de cada etapa.
E comer o bolo fatia por fatia.

domingo, 6 de setembro de 2009

Revidar pode, senhor gerente?

Sexta-feira, 4 de setembro, 8h05.
Uma mensagem com o título Camilo urgente surge no alto do meu Gmail. É do editor Cláudio Brites, da Editora Terracota, que publicou o livro Território V, organizado por Kizzy Ysatis:
"Camilo, espero que leia este e-mail rápido.
Kizzy estava em uma balada, A Loca, com a Liz Vamp.
E por conta de problemas que eu ainda não entendi, ele foi espancado e a Liz também. Segundo ele, chegou a perder dentes, está bem mal.
Ele queria saber se você, como repórter, não pode ir, ou mandar alguém ir lá fazer essa denúncia, registrar isso.
O celular dele é XXXXXXXX. O meu XXXXXXXX.
Abraços,
Cláudio Brites"


Em quinze minutos, eu teria de sair para uma pauta. E ainda estava de pijamas. O máximo que consegui fazer, naquele momento, foi mandar um torpedo para um conhecido do JT, a primeira pessoa que me veio à cabeça, contando o episódio e fornecendo os telefones. Passei o resto do dia na rua, em três reportagens diferentes, torcendo para pintar um intervalo que me permitisse ligar para o Kizzy. Quando consegui, o celular dele já estava desligado, provavelmente sem bateria.
Antes disso, mais ou menos na hora do almoço, no meio de um congresso de coloproctologia (afe!), atendi a um telefonema do irmão dele. Kizzy fazia exames na Santa Casa de Misericórdia. Esmurrado pelos seguranças da boate por volta das seis e meia da manhã, perdera um dente e exibia hematomas por todo o rosto. Liz Vamp, sua amiga, também fora agredida. A origem do conflito fora uma prosaica confusão na hora de pagar a conta: o funcionário dizia que ele ainda não havia quitado sua despesa, enquanto o cliente afirmava ter pagado, em dinheiro vivo, minutos antes.
Kizzy não é do tipo que leva desaforo pra casa. Nem do tipo que abaixa a cabeça para evitar barracos ou constrangimentos. Ele grita, se for preciso, e roda a baiana com a altivez de quem conhece seus direitos e exige respeito. Imagino que os seguranças da casa, beneficiados pela plateia viciada (àquela hora, quase que exclusivamente formada pelo staff do estabelecimento e parcos fregueses cativos), devem ter proferido as habituais grosserias de quem aprendeu nos tempos de corporação a fazer da violência física sua mais preciosa qualidade. E ouviram, provavelmente, uma resposta à altura - uma resposta inteligente e sagaz, daquelas que desmontam qualquer argumentação que não seja edificada com a mesma inteligência. Nessas horas, a alternativa é espancar. Isso essa gente faz com maestria.
Não foi a primeira vez que ouvi o relato de que um conhecido meu tivesse levado socos de seguranças da Loca. Lembro de uma história parecida, envolvendo um amigo jornalista, que uns seis ou sete anos atrás teria sido expulso aos murros sob a acusação de ter consumido maconha ali dentro ou qualquer coisa parecida. O fato é que, no final da tarde de sexta-feira, a notícia da agressão a Liz (cineasta, filha do José Mojica Marins) e ao Kizzy (o escritor Cristiano Marinho) já havia se espalhado. Estava no G1, no Uol, no Terra, na Folha Online. Em muitas das notas publicadas, constava a informação de que, ao prestar depoimento na delegacia, o gerente da casa teria afirmado que apenas revidara as agressões dos clientes. Revidar pode, senhor gerente? E revidar a que tipo de agressão? Revidar com socos e pontapés a uma afronta verbal? Ou foram os clientes que partiram antes para a violência física? Porque, se for esta a sua versão, ela não se sustenta, meu caro. Por certo o senhor não conhece o Kizzy.
Eloquente e intenso, muitas vezes grandioso em seus gestos e em seus arroubos literários, Kizzy é uma moça, um pássaro no sereno, gentil e delicado como apenas os poetas conseguem ser. Provavelmente, seus funcionários revidaram ao timbre firme com o qual o tal cliente denunciava a incompetência de uma casa que não consegue saber quem pagou e quem não pagou a comanda. E o fizeram do jeito que lhes pareceu mais apropriado: combatendo palavras com escoriações. Talvez os seguranças tenham se excedido um pouquinho. Talvez. Ou então, os hematomas e a fratura craniana sofridos pelo Kizzy sejam respostas à altura dos impropérios que o cliente, eventualmente, possa ter lhes berrado. Revidar pode, não é mesmo? Foi o senhor mesmo quem falou.
Bom, quem quiser ler o que o próprio Kizzy tem a dizer sobre o episódio - e tiver estômago para conferir, em imagens, o estado em que ele ficou após os golpes - acesse seu blog: http://kizzyysatis.blogspot.com. Triste o lugar em que corremos o risco de ser agredidos justamente por quem deveria zelar pela nossa segurança, nossa integridade.

domingo, 30 de agosto de 2009

A simbologia de uma placa

Sempre me incomodou saber que mais da metade dos projetos de lei aprovados no Brasil não passa de despachos para dar nome de fulano a uma rua, de cicrano a uma praça ou de beltrano a uma ponte. Principalmente quando me deparo com a proliferação de nomes que nada significam para mim (enquanto tanta gente digna de homenagem ainda não conseguiu batizar um beco sequer). Melhor seria se o Poder Legislativo proibisse nomes de gente nas vias públicas, tornando compulsória a adoção de nomes de flores, aves, paisagens, sentimentos. Eu, pelo menos, não acharia ruim avançar pela Avenida Begônia, virar à direita na Rua do Bosque, cruzar o Parque do Ipê, tomar a Rua Gavião à esquerda e, no final da ladeira, estacionar em frente à Praça Mantiqueira.
Na semana que passou, no entanto, pude ver o quanto a alteração no nome de uma rua pode ser essencial para a auto-estima de seus moradores e, acima de tudo, para que possamos celebrar, passo a passo, o iminente resgate da memória nacional e a tão sonhada conquista da cidadania. Na segunda-feira 23, em São Carlos (SP), foram inauguradas as primeiras placas com o nome de Dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife que, nos anos 70, firmou-se como um dos mais ativos arautos do combate à ditadura. Meses atrás, a Rua Dom Hélder Câmara tinha outro nome, de triste lembrança: Sérgio Paranhos Fleury.


Que justificativas poderia ter um vereador de São Carlos para propor (e conseguir a aprovação!) de uma lei cuja única finalidade fosse render homenagens ao mais cruel e sanguinário torturador que o Brasil já teve? Interpretado por Cássio Gabus Mendes no filme Batismo de Sangue, Fleury comandou o famoso Esquadrão da Morte - grupo paramilitar responsável por executar criminosos (e suspeitos) como se a pena de morte pudesse ser decretada à revelia da Justiça e do Direito - e era chefe do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) no período de máxima repressão, pós-68. Sob seu comando caíram os guerrilheiros Carlos Marighella, da Ação Libertadora Nacional, e Carlos Lamarca, da Vanguarda Popular Revolucionária, entre muitos outros.
Fleury não nasceu em São Carlos, mas em Niterói, no Rio de Janeiro, e nenhuma explicação me parece razoável para justificar o nome de rua a ele atribuído. Reportagem publicada em maio de 2008 na Revista Piauí mostrou a luta de alguns moradores envergonhados para, com a assessoria de estudantes da UFSCar, rebatizar os dois quarteirões malfalados. Ninguém gosta de morar numa rua com nome de palavrão. Para promover a troca, era preciso encaminhar à vereança municipal um abaixo-assinado com as rubricas de pelo menos 75% dos moradores. Isso foi feito. E coube ao vereador Lineu Navarro, do PT, apresentar o projeto sugerindo o nome do "bispo vermelho".
Dom Hélder é vinho onde Fleury foi vinagre. Fundador da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), foi quatro vezes indicado ao prêmio Nobel da Paz. Cronista e poeta inspirador, chegaria aos 100 anos em 2009 se não tivesse interrompido sua amorosa e comprometida missão uma década atrás. Em um de seus livros, intitulado O deserto é fértil, Dom Hélder deu uma pista para entendermos, ainda hoje, o valor de se buscar a justiça e a verdade, inclusive ao escolher os nomes das ruas:
Seria razoável pensar se adianta começar a clamar, de modo pacífico, mas decidido e firme, por justiça, enquanto a própria vida ou instituições a que pertença estejam comprometidas com a engrenagem das injustiças e da opressão. Na medida em que houver sinceridade em reconhecer a contradição provisória, na medida em que houver desejo sincero de encontrar, quanto antes - para si e para as instituições a que esteja preso - os caminhos da libertação, é ótimo ir-se comprometendo com a verdade e com a justiça.
Creio que São Carlos pode se orgulhar da rua recém-nascida. Falta à capital paulista - um dia, quem sabe... - encontrar nomes melhores para o "elevado" Costa e Silva, a Rodovia Castelo Branco, e, mais urgente do que todas, a ponte General Milton Tavares de Souza, assim batizada em homenagem a um torturador contumaz, que foi chefe do Centro de Informações do Exército (CIE) nos anos 70 e comandante do II Exército no anos 80.

sábado, 29 de agosto de 2009

Ergueu no patamar quatro paredes mágicas

"Se doar, o sinal abre mais rápido". A frase, não exatamente com estas palavras, havia sido riscada a dedo no cartaz empunhado por uma jovem que, por volta da uma da tarde, pedia dinheiro na esquina da Augusta com a Paulista.
O dinheiro não era para ela, mas para subsidiar a construção de casas populares. Erguidas com paredes mágicas e destinadas a populações que moram em situação de risco nesse brasil de meu deus, as casas de madeira são feitas em mutirões por jovens voluntários da ONG Um Teto Para Meu País, entre eles a moça que empunhava o cartaz, meu amigo Felipe Mello, e minha amiga Rachel Sterman, que está preparando um livro-reportagem sobre a ONG como trabalho de conclusão de curso em jornalismo.


Hoje, foi dia de passar o chapéu - no caso, cofrinhos em forma de casinhas de madeira estilizadas. Às 8h30, topei com uma turma de voluntários da Teto na Avenida Brasil, bem em frente à igreja Nossa Senhora do Brasil. Às 13h, dei de cara com a turma da Rua Augusta. No fim da tarde, quando já havia esquecido a data, encontrei mais uma galera fazendo pedágio na Heitor Penteado, pouco acima do metrô Vila Madalena.
Espero que a arrecadação tenha sido farta. E quem não teve a sorte de encontrar os coletores por aí, sinta-se à vontade para conhecer o projeto (e fazer também sua doação) visitando o site (clique aqui). Quem sabe os sinais não passam a abrir mais rapidamente.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Êxodo

O consumo de maconha deixou de ser crime na Argentina.
Ótima notícia!
Os hermanos parecem estar mesmo preocupados com a redução do fluxo de turistas.
Deu certo.
Já tem uma galera indo atrás de passagens para Buenos Aires.
Desconfio que alguns camaradas não voltam pro Brasil tão cedo...

"Green grass, blue eyes, grey sky, god bless
Silent pain and happiness
I came around to say yes and I say.
While my eyes go looking for flying saucers in the sky."

domingo, 23 de agosto de 2009

Sacerdócio

"Medicina é sacerdócio", disse-me o oncologista Paulo Hoff na semana passada, repetindo um clichê suturado por professores de medicina desde o primeiro ano da graduação. Responsável pelo tratamento do vice-presidente José Alencar e diretor-clínico dos serviços de oncologia do Hospital Sírio-Libanês e do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, Hoff veste a batina às sete da manhã e só larga a sacristia às nove da noite. Recebe pelo menos dez pacientes por dia em seu confessionário e procura expiar pecados em forma de receitas. É adepto da "dieta do kibe" (substituição do almoço por um salgado) e só quebra os votos de ordem e celibato aos fins-de-semana, quando se permite o lazer descompromissado com a mulher e as três filhas, além de profanas partidas de basquete disputadas no Parque do Ibirapuera.
Paulo Hoff já havia me convencido de que medicina é sacerdócio quando, neste sábado, decidi tirar o atraso da semana e, com a Época e a Veja nas mãos, fui ler o que havia a meu alcance sobre Roger Abdelmassih.


Maior nome em reprodução assistida no Brasil, Roger Abdelmassih está preso em São Paulo, acusado de cometer mais de 50 crimes sexuais contra mais de 30 mulheres ao longo dos últimos quinze anos. Com um histórico de mais de 5 mil bebês "concebidos" em sua clínica (a marca foi comemorada com festa em 2006), Abdelmassih descartou há muito tempo a alcunha de sacerdote por não lhe parecer suficiente. Em sua potência, é ele a própria divindade. "Doutor-Vida" foi um dos apelidos auto-atribuídos pelo médico ao longo de sua carreira. Em 2004, quando tive a oportunidade de entrevistá-lo, lembro de ouvir brincadeiras sobre isso. Convidou-me para ver, ao microscópio, o momento em que um óvulo era fecundado e, sorrindo, disse qualquer coisa como "pronto, fez-se a vida". Também lembro de ter me assustado ao ouvir algo como "aqui a gente trabalha para corrigir deslizes cometidos por Deus". Minha pauta, na ocasião, era uma técnica de manipulação genética que ele começava a praticar e que, supostamente, permitiria a adultos soropositivos gerarem filhos biológicos sem o vírus da Aids. Não levei o assunto adiante, não me recordo por quê, e a matéria nunca saiu.
Roger Abdelmassih sempre se orgulhou de trabalhar com belas assistentes e, naquele mesmo dia, confessou-se satisfeito por ter uma clientela, digamos, bem apessoada. "Não é todo mundo que tem a chance de gerar filhos em tantas mulheres bonitas", brincou mais uma vez. O que eu não podia desconfiar, ali, era que aquele senhor corpulento e de bigodes transitava entre a realidade e a ficção com mais agilidade do que os melhores romancistas. E que, de maneira violenta e enojante, chegava mais perto de realizar essa sombria obsessão do que poderia sugerir seu ríspido humor.
Funcionava mais ou menos assim. O casal interessado em ter filhos contratava um pacote, normalmente de três tentativas. Pagava cerca de 40 mil reais pelo tratamento (ou 30 mil em dinheiro, sem recibo). Em cada tentativa, a mulher era sedada para a punção do óvulo, que seria fecundado e laboratório e reinserido no dia seguinte. Ao se refazer do efeito do sedativo, algumas mulheres lembram ter despertado com o médico debruçado sobre sua cama, acariciando-lhe os seios por sob o avental. Algumas dizem ter acordado com a mão envolvendo o pênis do médico. Três pacientes teriam sido penetradas, ainda sob o efeito do sedativo. Uma delas acredita ter havido intercurso anal. Muitas juram ter sido prensadas contra a parede e beijadas na boca quando plenamente acordadas: estranha maneira que Abdelmassih encontrava para "comemorar" um resultado positivo (ou, pelo menos, a conclusão de mais uma tentativa).
A perversão, aliada a uma alta dose de delírio, fez com que o médico-monstro transformasse os atos libidinosos em rotina. Sua divindade era realçada pela conjuntura: mulheres fragilizadas e casais ressequidos após muitos anos de gestações adiadas ou interrompidas depositavam no doutor o que ainda lhes restasse de fé e esperança. Era ele uma espécie de ente mágico capaz de realizar o sonho mais punjante daquela mulher (daquele casal) e expurgar a frustração por ter se descoberto estéril, o que não costuma ser uma notícia de fácil apreensão para a maioria de nós. Sendo assim, a fantasia de acalentar um bebê, de embalar o sorriso mais delicioso do mundo, encobririam a humilhação vivida. E, no tênue momento em que o óvulo fecundado ainda é uma possibilidade, às vezes ainda sob a guarda da clínica, o abuso desponta como o preço do resgate: "se eu perder a calma agora, e provocar um escândalo, porei a perder minha última chance de maternidade". Fora isso, como em quase todos os crimes sexuais, não há evidências. E, até janeiro deste ano, todos eram capazes de dizer quem venceria a guerra entre a palavra do médico e a palavra da paciente.
Fico imaginando o produto dessas denúncias em todos os casais que se submeteram à reprodução assistida na clínica do Doutor-Vida. "Será que eu também fui abusada?" ou "Será que a minha mulher foi uma das vítimas?" devem ser fantasmas muito presentes. Se trinta e poucas mulheres, encorajadas pela avalanche de acusações, procuraram o Ministério Público para denunciar o médico, é óbvio que outras dezenas, quiçá centenas, não têm a mais remota ideia do que pode ter lhes acontecido sob o efeito do tal sedativo. Filhos gerados na clínica talvez sejam alvejados por dúvidas semelhantes. "Minha mãe teve de passar por isso para que eu pudesse nascer?" Que efeito esse tipo de questionamento é capaz de produzir na vida dessas pessoas? Se houver algum profissional da comunidade psi lendo esse alongado texto, convido-o para me dar alguma pista incluindo-a ali embaixo, no campo dos comentários.


Ainda na sexta-feira passada, a clínica de Roger Abdelmassih amanheceu pichada. O muro branco do casarão da Avenida Brasil é decorado, agora, com as palavras "Velho Safado". Para quem até recentemente se proclamava Doutor-Vida, acostumar-se ao novo apelido será questão de tempo. Exigirá, sim, alguma dose de humildade, abnegação e sacerdócio - elementos que não devem faltar a um Deus como ele.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Sede ou água?

Contribuição de Antonio Machado numa manhã fria de sexta-feira. A estrofe faz parte do poema Del Camino, publicado na primeira década do século XX:

Arde en tus ojos un misterio, virgen esquiva y compañera.

No sé si es odio o es amor la lumbre inagotable de tu aljaba negra.

Conmigo irás mientras proyecte sombra mi cuerpo y quede a mi sandalia arena.

- ¿Eres la sed o el agua en mi camino? Dime, virgen esquiva y compañera.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Mais histórias do Haiti

Os leitores deste blog talvez se recordem de um post publicado há pouco mais de um mês com o título Pense no Haiti, reze pelo Haiti. Nele, eu resumia alguns causos de viagem que me haviam sido contados pelo amigo Victor Ferreira sobre sua jornada de quatro dias pelos (esperançosos) escombros de Porto Príncipe. Tive de me conter, na ocasião, para não fornecer o serviço completo e virar escriba de repórter. Quem teria de contar as histórias de lá era ele mesmo, mais ninguém. Pois foi o que o moço fez. Seu relato e suas fotos viraram matéria de capa da Revista Brasileiros deste mês, nas bancas. Destaco um único parágrafo, com o acre sabor de colapso social e revolta que, acredito, irmanam leitor e cronista na aventura de Victor:
Violência eu não vi de perto. Mas assisti a cenas miseravelmente dolorosas. Como quando duas crianças fizeram montinhos de terra, untaram com água suja, moldaram num formato qualquer e colocaram ao sol. Até que uma delas pegou o "bolinho" mais maduro e mandou boca adentro. Era o almoço daquele dia. Não tive reação. Eu estava ali para contar essas histórias, mas preferia que elas não existissem.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

O tempo de uma dedicatória

Fiquei pouco mais de duas horas na Livraria Martins Fontes. Duas horas e meia, no máximo. Parece muito. E seria, evidentemente, para qualquer leitor ou visitante que se propusesse a folhear livros ou a buscar um rosto conhecido entre os autores presentes. Mas para alguém como eu, um falso extrovertido que finge encarar com naturalidade situações como palestras, mesas redondas e lançamentos de livros, acaba sendo tudo muito rápido. Rápido por não termos tempo de nos acostumar ao ambiente e nos sentir à vontade, e não por ser gostoso demais e nos dar vontade de eternizar o momento (como normalmente ocorre em namoro recente ou diante de um pavê de chocolate daqueles que só as nossas avós sabem fazer). Rápido porque notamos a aproximação de algumas pessoas queridas, algumas que não vemos há anos, e não temos mais do que dois ou cinco minutos para elas. O tempo da conversa é o tempo da dedicatória. E quanto tempo se gasta para se escrever uma dedicatória?


Andei pensando sobre isso. Que tipo de coisa vale escrever para um leitor que não te conhece? Um deles, juro, pediu que eu não apenas fizesse uma dedicatória, mas fizesse também um desenho. Logo eu? "Vale qualquer coisa", ele disse. Rabisquei lá a qualquer coisa que ele queria. E achei curiosíssimo. Quem sabe um dia eu não pego o Milton Hatoum de jeito, ou o Moacyr Scliar, e os convenço a me fazer um desenho. Bom, pelo menos ele não me pediu um carneiro. Outra leitora se aproximou, checando se eu era de fato autor de um dos contos, e confessou seu orgulho nos dois minutos que levei para dedicar meu texto a ela. "Meu filho está ali na mesa, é um dos autores, tem apenas 18 anos e este é seu primeiro texto publicado." Meus parabéns! Creio que era Angélica o seu nome (o que não deixa de ser também inusitado, uma vez que o meu conto se chama Anjo da Guarda e um encontro de vampiros não é exatamente o lugar mais convencional para se encontrar pessoas angélicas).
Com os amigos, a coisa fica mais complicada. Reinaldo, meu tio, teve de ir embora antes que eu chegasse. Isso significa que fiquei lhe devendo um autógrafo. E também que terei tempo de sobra para fazê-lo (eu acho). Maíra e Luanda, minhas irmãs de vinte e poucos, se aproximaram com um exemplar. Ora, irmã não foi feita para receber dedicatória em livro. Irmã foi feita para se dizer as coisas frente a frente, dar um empurrãozinho ou uma reconfortada quando a situação pede, ou uns safanões quando necessários. Não tenho a menor ideia do que ficou gravado naquela página. A Tiche trouxe a Amanda, outra irmã, uma que eu ainda consigo levantar no colo. Aos oito anos, ela apontava uns autores vestidos de preto, com unhas pintadas, e queria saber quem ali era vampiro de verdade. Essa vai ter de esperar um pouquinho para ler esse livro.
Aline apareceu para me dar apoio. Não conta. Ainda estou devendo um livro para ela. O Felipe Gombossy não me engana: foi lá para retribuir minha presença na vernissage da exposição de fotos dele no mês passado. Mas o cara é gente fina. E acabamos conversando sobre Foz do Iguaçu, onde ele nasceu e de onde acabou de chegar. Dizem que os vampiros de lá são craques em muambas e se alimentam de sangue falsificado. Mas o que eu queria mesmo era saber como estão os preparativos do casamento dele. O Nepô chegou com a Andréa. Ou foi a Andréa que chegou com o Nepô? Não interessa. Pai e filha são amigos muito queridos, provavelmente as pessoas de quem eu tenho as mais antigas lembranças excetuando-se meus familiares. Conheço-os desde os meus cinco anos e, como quase não nos vemos mais, sinto saudade com frequência. Com eles, até tentei escutar o que me diziam sobre o Tom, filho e irmão estudante de jornalismo que está de estágio novo. Mas a dedicatória termina logo. E a cabeça se divide entre a conversa truncada, as palavras rabiscadas em pé, os outros amigos que se aproximam...
Samuca, Nath e dois Felipes cruzam a porta. Esses são especiais. Especiais porque formam um pouco da ração do meu dia a dia. Quem passa oito horas ou mais, todos os dias, numa redação, aprende a se apoiar e se alimentar das expressões e dos gestos de quem vive ao redor. No meu caso, tenho o Samuca à minha frente e a Nath a meu lado, como se ambos ocupassem casas brancas de um tabuleiro de xadrez e eu vivesse numa casa preta. Ou vice-versa. É o tipo de simbiose em que um espirro é registrado, uma dúvida é espontaneamente perguntada, e nenhuma conversa ao telefone consegue passar despercebida ou em sigilo pelo outro. Alguém acha justo resumir uma dedicatória a esse tipo de amigo a três linhas mal traçadas, principalmente quando a caligrafia é uma desgraça e a ansiedade só piora as coisas?
De repente, o Alê se aproxima. Com a mulher e duas filhas pelas mãos. Outra viagem no tempo. Alê foi meu professor de artes no ginásio e me dirigiu como ator de teatro durante dois anos, entre 1995 e 1996. Aprendi muita coisa com ele, sobre o teatro do absurdo, sobre cinema e crítica cultural, e especialmente sobre a convivência entre lúdico e burlesco em todos os setores da vida humana, o barato de não se levar tão a sério, a poesia do cafona e a cafonice do poeta, e mais uma porção de coisas que não cabem em um post. Ele me conta que a filha está aficionada por histórias de vampiro e, após cinco anos desde nosso último encontro, sou obrigado novamente a reduzir o papo para fazer a fila andar.
Acho que ainda vou precisar comer muito feijão para me tornar minimamente simpático e à vontade em um lançamento de livro. Ainda bem que, por enquanto, não tenho nenhum outro a caminho.