terça-feira, 12 de julho de 2011

100 anos de esplendor

Em 12 de setembro de 1911, o Theatro Municipal de São Paulo abria as portas para seu primeiro espetáculo - com um dia de atraso e o primeiro engarrafamento da história da cidade
Publicado na edição de julho da Revista Época SÃO PAULO

SINAL DE PROGRESSO Dos 300 carros que havia 
na cidade, 100 foram à abertura. O trânsito parou
do Viaduto do Chá à Rua Xavier de Toledo


1º ATO
A novidade mereceu três páginas na edição do jornal O Estado de S. Paulo daquela terça-feira, 12 de setembro de 1911. Parágrafos solenes, ricamente floreados, anunciavam o evento.
“A inauguração do Theatro Municipal é justo motivo de júbilo para os paulistas”, dizia o texto. “Os que amam a arte enxergam, e bem, no acontecimento de hoje uma bella prova de quanto temos progredido e uma fulgurante promessa de mais rápidos e mais assignalados progressos: effeito do avanço já relativamente notável que conseguimos realisar (sic), o grande theatro da cidade reagirá por sua vez, e de mais em mais, sobre o espírito da população, accelerando a obra civilisadora (sic) de que elle próprio representa um dos doirados frutos.”
A cidade tinha 400 mil habitantes, população igual à do distrito de Pirituba em 2011. Carecia, no entanto, de uma sala apta a receber as mais importantes companhias líricas do mundo – ou seja, da Europa. O anúncio da construção entusiasmava a elite ilustrada, em luto desde 1898, quando um incêndio destruiu o Teatro São José, na Praça João Mendes. É verdade que outro edifício foi erguido para se tornar o novo São José, em 1909, onde hoje está o Shopping Center Light. Também é verdade que havia o Teatro Colombo, no Largo da Concórdia, e o Sant’Anna, na Rua Boa Vista. Mas, diante dos anseios de quem já havia desfilado seu chique em camarotes da Itália e França, tais palcos pouco alento traziam. Era preciso mais para estar à altura dos potenciais da cidade cada vez mais moderna, industrial e cosmopolita.
A inspiração, para dizer o mínimo, foi a Opera de Paris, hoje Opera Garnier. O projeto foi encomendado ao arquiteto Ramos de Azevedo. Operários italianos arregaçaram as mangas – e fizeram ao menos uma greve por melhores salários. Previstas para ser concluídas em dois anos, as obras demoraram oito. Vitrais vieram de Stuttgart, mosaicos chegaram de Veneza, mármore foi trazido de Florença, ornamentos de Milão e Paris. Quando pronto, o teatro foi saudado com pompa. “O imponente edifício monumental do morro do chá”, dizia o veterano jornal, “não faria má figura em qualquer das mais cultas cidades da Europa.” E mais: “Iniciado o funcionamento, uma pequena revolução se fará nos hábitos da sociedade paulistana”.

ANDAIME DESAFINADO Os italianos eram  
maioria entre os operários do teatro. Previstas 
para durar dois anos, as obras levaram oito

2º ATO
A inauguração deveria ter acontecido na véspera. A data do dia 11 aparece em cartazes e anúncios. No entanto, nem tudo transcorreu como o previsto. A primeira confusão se deu em relação ao espetáculo de estreia. A comissão encarregada de elaborar a programação da primeira temporada, nomeada pelo prefeito Raymundo Duprat, decidiu-se pela ópera Hamlet, adaptação da obra de Shakespeare pelo francês Ambroise Thomas. Jornais chiaram, vereadores protestaram. Onde já se viu inaugurar nosso maior teatro com um folheto francês baseado num livro inglês? Uma afronta à soberania nacional! Por que não O guarani, de Carlos Gomes? Para driblar a saia-justa, ficou acertado que o espetáculo inaugural seria precedido por trechos instrumentais da mais famosa ópera brasileira. E não se fala mais nisso.
A montagem caberia à Companhia Italiana Titta Ruffo, liderada pelo barítono de mesmo nome. A trupe estava em turnê pela Argentina e, sabe como é… Baixo orçamento é o maior estímulo da sagacidade. Além disso, naquela época não havia exigência de licitação. “A estreia com Hamlet, em 1911, foi um acaso, não uma escolha”, afirma Abel Rocha, diretor artístico do Municipal desde fevereiro. “Naquela época, companhias estrangeiras vinham à América do Sul com toda a produção, incluindo solistas, orquestras e cenários, e traziam diversos títulos, que eram apresentados alternadamente nos teatros pelos quais passavam.”
Para a temporada de inauguração, a companhia exibiria Hamlet e outras nove óperas, entre as quais, O barbeiro de Sevilha e Madame Butterfly. O contrato foi firmado e logo os pertences do grupo embarcaram rumo ao Porto de Santos. Ainda não havia aeroportos por aqui. Nem caos aéreo. Mesmo assim, cenários e figurinos – a essa altura tão aguardados quanto seria a taça Jules Rimet ao final da Copa do Mundo de 1970 – não chegaram a tempo. O espetáculo, com todos os ingressos vendidos, teve de ser adiado para a noite seguinte.
3º ATO
Os arredores do teatro ficaram intransitáveis no início da noite de 12 de setembro. O tráfego, quando fluía, era como se não avançasse: pianíssimo. Dos cerca de 300 automóveis que compunham a frota paulistana, mais de 100 se dirigiram ao local. Num evento de gala como aquele, quem perderia a chance de comparecer a bordo de um símbolo de status como o automóvel? Isso sem contar as centenas de espectadores que foram a pé ou de carruagem – sim, elas eram o meio de transporte habitual dos grã-finos não tão grã-finos.
A crônica elegeu a ocasião como o primeiro grande engarrafamento da cidade. Segundo publicado na semana, um delegado intercedeu junto à direção do teatro e exigiu que a entrada fosse feita por mais portas. “Com essa medida, a chegada das carruagens será mais rápida, sem os inconvenientes da interrupção de trânsito nas imediações”, dizia a nota. “Haverá proibição da passagem de carros pela Rua Barão de Itapetininga, sendo destinada a Rua 24 de Maio para a entrada dos veículos procedentes da Vila Buarque, Santa Cecília, etc.”
No palco, 70 instrumentistas, 56 coristas e 16 bailarinas eram conferidos de perto pelas 1.816 pessoas que lotavam a sala. Não se falou em outra coisa nos salões de chá ao longo da semana. Todos queriam saber sobre o novo endereço, suprassumo do refinamento. Nunca mais se veriam tantos chapéus e fraques na praça.
O Theatro Municipal firmou sua vocação lírica nos anos seguintes. Enrico Caruso e Maria Callas cantaram ali. Isadora Duncan e Anna Pavlova bailaram. Versátil, o teatro serviu a diferentes funções e, ainda na década de 1910, foi convertido em salão de baile. Em 1922, seu saguão foi tomado por arruaceiros como Menotti Del Picchia e Oswald de Andrade, líderes da Semana de Arte Moderna. Em 1936, Mário de Andrade foi nomeado diretor do recém-criado Departamento de Cultura, precursor da secretaria municipal, passando a chefiar as atividades no Municipal. Reformado entre 1952 e 1955, quando colunas foram suprimidas e as poltronas foram estofadas, o teatro foi tombado, em 1981, pelo Condephaat, órgão estadual do patrimônio, e passou por uma nova intervenção no final dos anos 1980. No início do século XXI, clamava por obras de restauro.
4º ATO
Maldito arenito! Absorve umidade e dissolve-se por dentro, virando areia a partir do miolo, até comprometer todo o bloco. Que ideia ir buscar arenito em Sorocaba! Cem anos depois, foi preciso usar a mesma matéria-prima, da mesma mina, para reformar a fachada. E para quê? Para daqui a 20 anos a estrutura acusar novamente a passagem do tempo e pedir novos reparos – como costuma acontecer com o asfalto usado nas ruas da metrópole. Não havia material melhor naquela época, Ramos de Azevedo? Não dava para fazer com pedra ou tijolo?
Em três anos de restauro, a substituição de porções de arenito da fachada foi apenas uma das muitas tarefas executadas. Arquiteta do Departamento do Patrimônio Histórico (DPH), responsável pelas obras, Rafaela Bernardes acha graça quando alguém se surpreende ao saber que todas as 1.533 poltronas foram numeradas antes de ir para a oficina. “E os 14.262 pedaços de vitrais,  também etiquetados?”, diz ela, comparando. Hoje, ao acompanhar jornalistas em visita ao teatro, ela esboça o sorriso merecido de quem pode, enfim, admirar as novas cores do piso, das paredes, dos detalhes.
“A sala de espetáculos voltou a ser cor-de-rosa, como era até 1990”, afirma Rafaela. “Conseguimos eliminar 90% do rangido do assoalho da plateia e recuperamos as pinturas murais, tanto do salão nobre quanto do espaço que chamamos de restaurante, agora com projeto decorativo dos irmãos Campana.” Também foram comprados novos equipamentos para o palco, capacitando a casa a receber grandes produções, incompatíveis com a tecnologia anterior.
De tempos em tempos, o sorriso de Rafaela some e as sobrancelhas se elevam. Nessas horas, é sinal de algo que somente ela percebe – uma sujeira no vidro, um rodapé descascado. Dias antes da reinauguração, em junho, Rafaela se transformou em tocadora de pombos. A cada aterrissagem, a arquiteta acusa o golpe, intenso demais para quem dedicou três anos à tarefa de preservar beirais, capitéis e esquadrias. É preciso correr, gritar, espernear. Xô, pássaro imundo! Vá fazer porcaria do lado de lá do Anhangabaú! Rafaela, em breve, sairá de férias. Os pombos, ora, eles nunca descansam.
5º ATO
O teatro foi reinaugurado no último dia 12 de junho, com apresentações da Orquestra Sinfônica Municipal, do Coral Lírico e do Quarteto de Cordas da Cidade. Poucos eram os fraques e chapéus na ocasião. Hoje, dizem, a intenção é democratizar o acesso à arte, embora a vocação do teatro permaneça a mesma. “É a casa lírica da cidade, concebida para apresentar, principalmente, óperas e balés com orquestra”, diz o secretário municipal de Cultura, Carlos Augusto Calil. Em 12 de setembro, o centenário do Municipal será celebrado com uma montagem de Rigoletto, de Verdi, com concepção original de Felipe Hirsch e cenários de Daniela Thomas. Para os próximos anos, está prevista a construção de um edifício-garagem na esquina da Rua 24 de Maio com a Rua Conselheiro Crispiniano. Enquanto ele não fica pronto, a dica é ir de ônibus ou metrô. Até porque uma das poucas coisas que não mudaram desde a inauguração, um século atrás, é o trânsito ao redor da sala.