sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Esse ano foi "treze"


Seguem treze indícios:

1) Abandonei uma carreira de mais de uma década fazendo revistas (2000-2012) para ir trabalhar numa produtora, a Busca Vida, e ajudei a lançar um filme: "Elena".


2) Comecei um mestrado em ciências da comunicação (sim, isso existe) com a promessa de escrever uma dissertação sobre um produto em extinção: revistas de cidade. Aprendi pra cacete nas cinco disciplinas que cursei — e meu orientador me convenceu a não mudar de tema.

3) Fui chamado de "papai" pela primeira vez (hoje a média é de 30 vezes por dia).

4) Abri uma empresa: a Discurso Direto Ensino e Comunicação.

5) Pedi demissão novamente e virei autônomo (aliás, continuo desempregado e só tenho "projetos" até fevereiro; portanto, queridos colegas, diretores, gestores e empresários, lembrem-se de mim em 2014: estou facinho e cheio de amor pra dar).

6) Um fotógrafo me convidou para editar seu primeiro livro, "Retratos do Teatro". Ganhei um belíssimo exemplar e meia dúzia de novos amigos.

7) Ainda não consegui concluir uma biografia (autorizada, diga-se de passagem) que escrevo há quase dois anos e meio. E olha que o plano era terminar em um ano. Pelo menos entreguei a primeira versão em novembro. Tenho fé de que em janeiro acaba.

8) Fiz a primeira promessa da minha vida e, apesar de ser este católico bissexto e inconstante, minha graça foi alcançada em poucos dias. Aleluia. Resultado: já se vão cinco meses sem consumir álcool. E ainda me manterei abstêmio até março. Ou seja: não passava um Natal e um Ano Novo tão sóbrio desde os 15 anos.

9) Vou ser papai de novo! Em resumo, virei o estereótipo do brasileiro típico: duro, desempregado, sem casa própria — e fazendo filho.

10) Deus, que é brasileiro como todos sabem, anos depois de dar uma mãozinha para o Maradona, resolveu fazer um Papa argentino. Depois disso, tudo desandou: um pastor homofóbico foi presidir a Comissão de Direitos Humanos da Câmara; manifestante virou vândalo e Mandela virou símbolo de pacifista até entre os liberais e reacionários convictos; Chico Buarque desatinou; o prefeito de São Paulo foi achincalhado por implementar faixas exclusivas de ônibus; o herói mitológico do STF desrespeitou colegas ("chicanas"), cometeu abusos e é suspeito de irregularidades; o governo federal esperou a última semana de dezembro para anunciar de surpresa um reajuste enorme no IOF quando um monte de gente já estava de férias no exterior (buuu!); o Spider abusou e deu no que deu; o maior piloto da história recente do automobilismo agoniza após um acidente praticando esqui...

11) Tornei-me co-autor de um livro infantil. Em processo de edição, mas já entregue à editora. Ainda é sigilo (eu acho). Que ele seja o primeiro de muitos!

12) Meu neném vai ser uma menina: Bruna.

13) A revista que eu ajudei a criar, na qual trabalhei durante cinco anos e sobre a qual devo basear grande parte do que escreverei na minha dissertação de mestrado foi "descontinuada" nos estertores do ano. 

Depois de tudo isso, imagina na Copa.
Que venha 2014!
Um próspero ano novo para vocês (porque eu não via a hora de poder usar a palavra próspero, juro).

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

RIP Época São Paulo


            Hoje recebi a notícia de que a Revista Época São Paulo acabou. O comunicado oficial diz que ela voltará a circular eventualmente, em datas especiais, no ano que vem. Fato é que a equipe foi inteiramente desarticulada, com mais de uma dezena de demissões.
            Trabalhei por cinco anos na redação de Época São Paulo, entre janeiro de 2008 e dezembro de 2012. Fui repórter e editor, durante períodos equivalentes. Aprendi muito nessa temporada e posso dizer que curti cada apuração realizada e cada fechamento, dos mais divertidos aos mais desesperadores. Nessa semana, completei um ano fora da revista — e registrei há exatos dois dias a saudade que sinto da velha casa num post no Facebook.
            Atribuo essa saudade basicamente a três fatores. O primeiro deles é a oportunidade de fazer parte de uma equipe fundadora. Pisei pela primeira vez no sexto andar do prédio quatro meses antes de ver a primeira edição chegar às bancas. Foram quatro meses de expectativa e muito trabalho. Medo e delírio no Jaguaré. Só quem teve, como eu, a experiência de presenciar o nascimento de um título, seja como diretor ou como estagiário, sabe a dor e a delícia de ver um projeto tomar forma, inventar seções, inaugurar conceitos, sintetizar ideias.
            Também devo muito da minha saudade às aventuras da reportagem. Não me lembro de ter gastado a sola de nenhum sapato, como os antigos costumavam dizer, não a ponto de enxergar furos ou sentir o calor do asfalto atravessar a borracha. Mas gastei muita caneta bic, a ponto de esfregar o refil de tinta com as mãos para tentar extrair dele mais algumas anotações no bloquinho antes de ser obrigado a sair em busca de uma caneta substituta. Gastei, também, muito olhar, muito olfato, muita audição, um volume razoável de lábia e um bom conjunto de análise nesse período. Rodei a cidade e fui rodado por ela.
            Colecionei histórias como quem costura vidas. Um rali nas obras do Rodoanel, a triste sina do operário que morreu na construção da ponte estaiada, o drama das transexuais na fila da cirurgia, as falcatruas que permitiram a inauguração do estádio do Morumbi. Aprendi um bocado sobre tatuagens e marketing político, transplante de medula e subprefeituras, slam e Adoniran Barbosa. Morei num apartamento no Centro para ver de perto a tal da "revitalização", me apaixonei pelas memórias da Cinelândia paulistana, percorri o trajeto feito pelo lixo desde nossas casas até os aterros sanitários e usinas de reciclagem. Fui numa balada sobre rodas, passei de barco no Tietê e dormi a última noite do hotel Ca D'Oro. Entrevistei o Lula, proseei com Frei Betto, troquei figurinhas com Renato Janine Ribeiro e farpas com o Coronel Álvaro Camilo, perfilei o Paulo Hoff. Dei risada com o Maluf. 
            Finalmente, o terceiro motivo para a saudade é, provavelmente, aquele que mais nos define e inspira, seduz e estimula, motiva e conforta: o elemento gente. Foram tantos caminhos que se cruzaram ali, parcerias construídas, amizades reveladas, trocas inestimáveis de experiência e carinho. Muitas crises e algumas vitórias. Porres. Paixões (tem casal que surgiu na redação e continua firme até hoje). Houve quem partisse para sempre. Há os que não partirão jamais. Arte do encontro. "Somos do tecido de que são feitos os sonhos", escreveu Shakespeare. "O tempo é a substância de que sou feito", rebateu Jorge Luis Borges. Época São Paulo foi isso: tempo e sonho, simultaneamente.
            Hoje, preparo uma dissertação de mestrado sobre revistas de cidade, na qual Época São Paulo deverá desempenhar um papel primordial, quiçá o principal, em razão do meu envolvimento com ela e meu conhecimento sobre os meandros de sua trajetória. Ao deixar a revista, em 2012, eu era o último remanescente da equipe fundadora, o que faz de mim seu membro mais longevo, o único que, sobrevivendo aos três diretores que a revista teve, testemunhara o rodízio de todos os profissionais, em todos os postos. Mas a ideia, ao abordar a Época São Paulo como exemplo de erros e acertos, e principalmente de proposições para o futuro, sempre foi me debruçar sobre uma revista atual, contemporânea, e não sobre um título extinto, um ex-título, que já não há. Escapa-me, de certa forma, o objeto: liquefez-se, como Bauman. E folheio editoriais como se, assim, cumprisse o ritual milenar de "beber o defunto".
            "A revista que São Paulo merece", sintetizou Paulo Nogueira, então diretor editorial da Editora Globo, na carta ao leitor publicada na primeira edição. "Desde seu lançamento, Época São Paulo apontou um novo caminho para o jornalismo de cidades no Brasil. Nada de subestimar o leitor", escreveu Alexandre Maron, o primeiro diretor da publicação, no editorial do número 6. E acrescentava, no mesmo parágrafo, antes de anunciar que aquela seria sua última edição à frente do título: "Oferecemos uma revista linda, com reportagens mais longas e profundas, para quem gosta de ler. Nosso roteiro é visualmente impressionante e valoriza toda a experiência do jantar ou da diversão com amigos e família. Na esteira dessa qualidade, nos tornamos um enorme sucesso comercial. Tenho orgulho das conquistas desta equipe."
            Seu sucessor foi Ricardo Alexandre, que disse o seguinte no editorial da 12ª edição: "Muito se discute sobre o futuro das revistas, especialmente desde que a internet chegou, virando tudo de cabeça para baixo. Mas parece consenso que o caminho para as revistas de papel é fugir da briga direta com o universo on-line. A internet tem a rapidez, a agilidade, a multimídia, a interação. O papel tem a profundidade, o charme, a autoridade. Nós, de Época São Paulo, queremos ter o melhor dos dois mundos."
            Os militantes de Época São Paulo percorreram esse objetivo por 67 edições. No editorial da última edição, sem saber da iminência do desfecho, o diretor Celso Masson citou uma enquete feita no site da revista com a pergunta "O que você gostaria de ganhar neste Natal?". Se a campeã entre as respostas foi uma viagem à Europa, o segundo lugar foi conquistado por uma alternativa inusitada: um abraço. "A grande surpresa foi constatar que 14% dos que responderam à enquete gostariam de ganhar um abraço", escreveu ele. "Símbolo de carinho, acolhimento e afeição, o abraço desejado pelos internautas pode ser entendido como uma declaração de paz num ano marcado por ondas de violência de um tipo inédito na cidade". Logo adiante, no parágrafo seguinte, profetiza o canto do cisne: "Talvez a opção pelo abraço seja, ainda, a esperança de que dias melhores virão. Tomara que venham mesmo."
            Aos mais de 50 profissionais que fizeram Época São Paulo e conviveram comigo nos corredores da revista a longo dos cinco anos em que estive lá, deixo também meu abraço. E faço coro com os votos de Celso Masson. Tomara.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

A "selfie" de Obama

A "selfie" de Obama em foto de Robert Schmidt para a France Presse 

Essa foi, sem dúvida, a foto mais comentada da semana. No alto, da esquerda para a direita, aparecem o premiê da Grã-Bretanha, David Cameron, a premiê da Dinamarca, Helle Torning-Schimidt, o presidente dos EUA, Barack Obama, e a primeira-dama americana Michelle Obama. O cenário? O estádio Soccer City, em Joanesburgo. A ocasião? O funeral de Nelson Mandela. Bastou cair na rede para que a imagem corresse o mundo. Que disparate, que desrespeito, que absurdo, julgaram os web-patrulheiros. Isso lá é hora de ficar tirando foto, entre chistes e gracejos, como se estivessem todos na casa da sogra? Saca só a expressão de paisagem de Michelle, minha gente. Pensa no constrangimento dela diante de um marido tão inoportuno quanto fanfarrão...

Meme publicado no Blogotariat.com

As conclusões instantâneas dos web-patrulheiros foram sintetizadas em dezenas de notas, em blogs e jornais de diversos países. Quase sempre, inclusive no Brasil, as matérias faziam referência não a uma "foto" tirada pelos chefes de estado, mas a uma "selfie", a selfie de Obama, segundo a preferência dos editores. "Obama participa de 'selfie' no funeral de Nelson Mandela", informou o jornal O Globo. "Obama tira 'selfie' no funeral de Mandela", sintetizou o Estadão logo depois. Obama e premiê dinamarquesa fazem 'selfie' no funeral de Mandela", repetiu Veja quase duas horas depois. Impagável, o jornal O Povo, de Fortaleza, optou por divulgar a repercussão imediata da foto, com base num tuíte de Michael Moore: "Reação de Michele (sic) ao 'selfie' de Obama não tem preço, diz cineasta". E logo apareceu, pelas mãos da Carta Capital, o primeiro artigo a analisar a situação com olhar de observatório: "A 'selfie' de Obama e o jornalismo apressado". 


A sátira do site Ela tá de Xico ironiza a espionagem dos EUA

Desatento perante a maioria das novidades da internet e ignorante quanto a muitas expressões inglesas, eu não fazia ideia do significado de "selfie" e fui pego de surpresa pelas chamadas que pipocavam na minha timeline. Num primeiro momento, intuí que selfie deveria significar brincadeira, descompostura, provocação. Mais do que o auto-retrato, o que parecia causar espécie entre os comentaristas era a suposta falta de tato do presidente. Selfie, portanto, só poderia se referir a isso: um acinte. Deixei pra lá. 


Reportagem publicada no jornal espanhol El País

No segundo dia, uma nova notícia me trouxe de volta ao tema. Agora, era o autor da imagem, Roberto Schmidt, quem explicava o momento da foto num blog da France Presse, agência para a qual trabalha. No texto, intitulado "The story behind 'that selfie'", o fotógrafo afirma que Michelle não estava de mau humor como a imagem pode dar a entender. Instantes antes do clic, segundo ele, Michelle também brincava, assim como muitos dos presentes ao funeral. "Em todo o estádio, sul-africanos dançavam, cantavam e riam em homenagem ao líder", escreveu Schmidt. "Estava mais para uma atmosfera de Carnaval, nem um pouco mórbida". Fui, enfim, procurar o significado de selfie. A expressão nada mais é do que a síncope, o encurtamento, de self-portrait, auto-retrato. Óbvio. 

Na acepção correta do termo, a selfie não seria de Obama, mas da premiê dinamarquesa, ladeada circunstancialmente por Cameron e Obama, como uma Dona Flor de paletó e colar de pérolas. E selfie, descobri em seguida, é palavra da moda. Em novembro, foi escolhida como palavra do ano pelos editores dos dicionários Oxford (sim, esse pessoal não tem mais o que fazer e usa o tempo livre fazendo eleições desse tipo). Em 2012, a escolhida por eles havia sido "gif".  
  
Cameron, Helle e Obama, portanto, se mostraram antenadíssimos. Madiba e Michelle que me perdoem, mas fazer selfie é fundamental, essencial, mais forte do que nós. Segundo a turma dos dicionários Oxford, as redes sociais popularizaram de tal maneira a produção e a publicação de auto-retratos que o uso da palavra selfie aumentou 17.000% num intervalo de doze meses. Se os homens, em especial os turistas, jamais conseguiram reprimir o impulso de fotografar tudo o que veem — como se ter uma foto da Torre Eiffel fosse mais importante do que admirá-la —, os smartphones cumpriram o papel de facilitar o trabalho de incluir-se na paisagem, o que antes exigia malabarismos manuais ou o inevitável pedido a um estranho qualquer: "você se importaria de tirar uma foto minha?".

Eu mesmo, habituado desde os 20 anos a viajar sozinho para fazer matéria em diferentes lugares, me tornei um habitué das selfies antes mesmo de usarem o termo pela primeira vez, o que aconteceu em 2002, sempre segundo o pessoal de Oxford. Mas dava trabalho, em especial com minha câmera de objetivas cambiáveis. Qual não foi minha surpresa quando comprei um iPhone há dois anos e descobri um comando que simplesmente inverte o sentido da lente, permitindo que eu enxergue a mim mesmo no display. Virou festa. Dá para fazer caras e bocas sozinho, sem ninguém por perto, disparar dezenas de fotos e, em seguida, apagar todas as que desagradam. Ficou sem foco? Delete. A luz não ajudou? Delete. Pisquei? Delete. Arregalei os olhos? Delete. Tô gordo? Delete. Que narigão... Delete. A prática é tão difundida que o Guardian acaba de publicar uma divertida lista com as piores e melhores selfies divulgadas ao longo do a ano (obrigado pela dica, Edu!).

Selfie do astronauta Luca Parmitano: a melhor segundo o Guardian

Numa rápida consulta ao meu rol de amigos no Facebook, arrisco dizer que uns 20% adotam selfies como fotos do perfil. Isso sem considerar os que, em lugar da foto, preferem publicar grafismos, ilustrações ou fotos de outras pessoas.

Sobre a selfie dos chefes de Estado captados no Soccer City, achei um barato. Fiquei imaginando a tal da Helle acionando o 3G para atualizar imediatamente sua foto do perfil. Nada mais natural. Se pintasse uma oportunidade, você também não ia querer tirar uma foto com o Obama? E mais: não ia querer guardar para a posteridade uma prova de que compareceu ao funeral de Mandela, igualzinho ao Bono e à Naomi? Eu ia. Ô se ia.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Livros de fotografia

Gostava mesmo era de ler fotografias. Não que lhe faltasse letramento para contos ou romances. Ao contrário, percorrera todo um universo literário – épicos, poemas e tratados – antes de aprender a passear pelas tramas tecidas com imagens. Hoje, lia apenas eventualmente os livros de história, esses volumes maçantes, cheios de palavras, nos quais tudo o que interessa já está posto. Ora, que falta de graça não deixar espaço para que o leitor crie também suas histórias.
           
         
Talvez por isso gostasse tanto dos livros de fotografia. Neles, cada página é um portal, uma janela aberta para um mundo de sensações. Quem lê fotografias preenche essas janelas como bem entende.


Uma imagem sugere um thriller de suspense. Outra, logo adiante, uma paixão incendiária. Algumas imagens têm o dom dos grandes oráculos: foram construídas para que os passantes a cobrissem de perguntas. Muitas delas continuam sem respostas. Há também as fotografias-denúncia, que parecem ter sido plantadas pelo Ministério Público para suscitar protestos e indignação. Fome, miséria, desmatamento, violência.


Nosso leitor de fotografias era fascinado por todos os gêneros. Até as paisagens o atraíam, nos catálogos visuais que proliferam em cidades turísticas e santuários ecológicos.


Teve uma época em que ele passou a escolher médicos e dentistas em razão dos livros de fotografia que encontrava na ante-sala. Irritado com o longo tempo de espera a que era submetido, descobriu nos livros de fotografia o melhor remédio para curar a ansiedade. Alguns pacientes, em iguais condições, se agarram a seus telefones, enquanto outros recorrem às revistas de celebridades. Ele lia fotografias. E as lia com tamanho arrebatamento que, eventualmente, hesitava em adentrar o consultório ao ouvir seu nome.


A vantagem, ele dizia, era que esse tipo de leitura dispensava a conclusão de uma ideia, um capítulo ou um parágrafo. No máximo, quando não desse para explorar todas as possibilidades da imagem, voltaria a ela na consulta seguinte. Sim, porque havia ocasiões em que ele se debruçava sobre uma única imagem até ser atendido.


Façamos as contas. Em quanto tempo você lê uma página de romance? Dois minutos? Cinco? E uma foto? As páginas dos livros de fotografia não têm um tempo definido de leitura. É possível folhear rapidamente, passando de uma foto para outra com agilidade de videoclipe. Ou se deter longos minutos em cada página, extraindo cada gole como numa degustação. Uma vez, ele ficou exatos 38 minutos observando uma única foto à espera do oftalmologista. E seria capaz de dedicar ainda mais tempo a ela, porque alguns detalhes não tinham sido investigados como deveriam. Acabou comprando o mesmo livro no dia seguinte.


Outra coisa que o fascinava nos livros de fotografia era seu potencial decorativo. Bobagem colocar todos eles em prateleiras. Na sua casa, alguns ficavam na mesinha de centro, outros no aparador; e havia ainda uns dois ou três que, em rodízio, viviam no criado-mudo: eram suas fotos de cabeceira.


Os livros de fotografia combinam arte e reportagem e, por isso, atiçam dois sentimentos que nos são muito caros: o fascínio pelo belo e a sede de novidades. Pessoas, bichos, prédios, barreiras de corais ou refugiados árabes, tudo se transforma em informação sedutora, emoldurada como óleo sobre tela. E nos remetem, esses livros, a cenários ou pessoas que já conhecemos ou às quais acabamos de ser apresentados, no momento em que viramos a página.


É o que acontece quando observamos os retratos de Bob Sousa. Quem está ali? Se não sabemos quem é, inventamos na mesma hora uma história para ela. Por outro lado, se for um artista conhecido, uma figura notória, rapidamente viajamos ao passado.


Um retrato de Zé Celso talvez nos faça lembrar de uma encenação das Bacantes, ou de Cacilda, ou dos Sertões, não importa. Os mais velhos poderão se ver novamente diante de uma cena da peça Roda Viva, por que não?


É Macunaíma que escapa do olhar de Antunes? Ou Medéia, a Pedra do Reino, uma das várias edições de Prêt-à-porter?


Maria Alice Vergueiro encarna A Velha Dama Indigna no tablado ou arrebata multidões digitais com seu Tapa na Pantera?


Como disfarçar o sorriso diante do rei Ubu revelado na foto de Cacá?


Em mais de uma década de atividade, centenas de profissionais ligados ao teatro posaram para as objetivas de Bob. Objetivas totalmente subjetivas, é bom que se diga.


Atores e atrizes, autores e diretores, críticos e produtores, centenas de artistas talentosos foram perpetuados em imagens igualmente talentosas e afetivas. Ao longo dos anos, o fotógrafo foi ajustando o foco, afinando o diafragma, até se tornar o que é, o velho Bob, um cara que um dia quis fazer teatro e acabou feito por ele.


Os retratos de Bob, reunidos e encadernados pela primeira vez, farão o aficionado por livros de fotografia dedicar muitos minutos a cada imagem. Diante dele estará não apenas uma foto, mas um palco, um camarim, uma coxia. E esses locais são, como a fotografia, espaços de transmutação, transfiguração e tele-transporte: portais fascinantes que nos permitem trafegar por outros cenários, percorrer outras dimensões. Visitar, enfim, todos os mundos do mundo.


Os retratos de Bob são de outro mundo.

–––

* Este texto foi escrito em outubro de 2013 para ser lido por Danilo Grangheia no teaser produzido por Laerte Késsimos por ocasião do lançamento do livro "Retratos do teatro", de Bob Sousa, em novembro do mesmo ano. O vídeo pode ser visto no YouTube.
** Com 164 fotos que retratam 169 personalidades que "carregam o piano" do teatro paulista, entre atrizes, atores, diretores, produtores, autores e críticos, o livro de Bob Sousa foi editado por mim e publicado pela Editora Unesp. No site da editora é possível baixar gratuitamente a versão digital.

*** Notei que esse post quebrou um tabu de mais de um ano sem publicar no blog. Que horror. Que vergonha. Que vexame. "Mas isso significa que você voltou à ativa por aqui, não é?", poderia perguntar o leitor mais entusiasmado (ou temeroso).  Não. Ainda é cedo para comemoração (ou luto). Não prometo nada. Não prometo nada.