quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

RIP Época São Paulo


            Hoje recebi a notícia de que a Revista Época São Paulo acabou. O comunicado oficial diz que ela voltará a circular eventualmente, em datas especiais, no ano que vem. Fato é que a equipe foi inteiramente desarticulada, com mais de uma dezena de demissões.
            Trabalhei por cinco anos na redação de Época São Paulo, entre janeiro de 2008 e dezembro de 2012. Fui repórter e editor, durante períodos equivalentes. Aprendi muito nessa temporada e posso dizer que curti cada apuração realizada e cada fechamento, dos mais divertidos aos mais desesperadores. Nessa semana, completei um ano fora da revista — e registrei há exatos dois dias a saudade que sinto da velha casa num post no Facebook.
            Atribuo essa saudade basicamente a três fatores. O primeiro deles é a oportunidade de fazer parte de uma equipe fundadora. Pisei pela primeira vez no sexto andar do prédio quatro meses antes de ver a primeira edição chegar às bancas. Foram quatro meses de expectativa e muito trabalho. Medo e delírio no Jaguaré. Só quem teve, como eu, a experiência de presenciar o nascimento de um título, seja como diretor ou como estagiário, sabe a dor e a delícia de ver um projeto tomar forma, inventar seções, inaugurar conceitos, sintetizar ideias.
            Também devo muito da minha saudade às aventuras da reportagem. Não me lembro de ter gastado a sola de nenhum sapato, como os antigos costumavam dizer, não a ponto de enxergar furos ou sentir o calor do asfalto atravessar a borracha. Mas gastei muita caneta bic, a ponto de esfregar o refil de tinta com as mãos para tentar extrair dele mais algumas anotações no bloquinho antes de ser obrigado a sair em busca de uma caneta substituta. Gastei, também, muito olhar, muito olfato, muita audição, um volume razoável de lábia e um bom conjunto de análise nesse período. Rodei a cidade e fui rodado por ela.
            Colecionei histórias como quem costura vidas. Um rali nas obras do Rodoanel, a triste sina do operário que morreu na construção da ponte estaiada, o drama das transexuais na fila da cirurgia, as falcatruas que permitiram a inauguração do estádio do Morumbi. Aprendi um bocado sobre tatuagens e marketing político, transplante de medula e subprefeituras, slam e Adoniran Barbosa. Morei num apartamento no Centro para ver de perto a tal da "revitalização", me apaixonei pelas memórias da Cinelândia paulistana, percorri o trajeto feito pelo lixo desde nossas casas até os aterros sanitários e usinas de reciclagem. Fui numa balada sobre rodas, passei de barco no Tietê e dormi a última noite do hotel Ca D'Oro. Entrevistei o Lula, proseei com Frei Betto, troquei figurinhas com Renato Janine Ribeiro e farpas com o Coronel Álvaro Camilo, perfilei o Paulo Hoff. Dei risada com o Maluf. 
            Finalmente, o terceiro motivo para a saudade é, provavelmente, aquele que mais nos define e inspira, seduz e estimula, motiva e conforta: o elemento gente. Foram tantos caminhos que se cruzaram ali, parcerias construídas, amizades reveladas, trocas inestimáveis de experiência e carinho. Muitas crises e algumas vitórias. Porres. Paixões (tem casal que surgiu na redação e continua firme até hoje). Houve quem partisse para sempre. Há os que não partirão jamais. Arte do encontro. "Somos do tecido de que são feitos os sonhos", escreveu Shakespeare. "O tempo é a substância de que sou feito", rebateu Jorge Luis Borges. Época São Paulo foi isso: tempo e sonho, simultaneamente.
            Hoje, preparo uma dissertação de mestrado sobre revistas de cidade, na qual Época São Paulo deverá desempenhar um papel primordial, quiçá o principal, em razão do meu envolvimento com ela e meu conhecimento sobre os meandros de sua trajetória. Ao deixar a revista, em 2012, eu era o último remanescente da equipe fundadora, o que faz de mim seu membro mais longevo, o único que, sobrevivendo aos três diretores que a revista teve, testemunhara o rodízio de todos os profissionais, em todos os postos. Mas a ideia, ao abordar a Época São Paulo como exemplo de erros e acertos, e principalmente de proposições para o futuro, sempre foi me debruçar sobre uma revista atual, contemporânea, e não sobre um título extinto, um ex-título, que já não há. Escapa-me, de certa forma, o objeto: liquefez-se, como Bauman. E folheio editoriais como se, assim, cumprisse o ritual milenar de "beber o defunto".
            "A revista que São Paulo merece", sintetizou Paulo Nogueira, então diretor editorial da Editora Globo, na carta ao leitor publicada na primeira edição. "Desde seu lançamento, Época São Paulo apontou um novo caminho para o jornalismo de cidades no Brasil. Nada de subestimar o leitor", escreveu Alexandre Maron, o primeiro diretor da publicação, no editorial do número 6. E acrescentava, no mesmo parágrafo, antes de anunciar que aquela seria sua última edição à frente do título: "Oferecemos uma revista linda, com reportagens mais longas e profundas, para quem gosta de ler. Nosso roteiro é visualmente impressionante e valoriza toda a experiência do jantar ou da diversão com amigos e família. Na esteira dessa qualidade, nos tornamos um enorme sucesso comercial. Tenho orgulho das conquistas desta equipe."
            Seu sucessor foi Ricardo Alexandre, que disse o seguinte no editorial da 12ª edição: "Muito se discute sobre o futuro das revistas, especialmente desde que a internet chegou, virando tudo de cabeça para baixo. Mas parece consenso que o caminho para as revistas de papel é fugir da briga direta com o universo on-line. A internet tem a rapidez, a agilidade, a multimídia, a interação. O papel tem a profundidade, o charme, a autoridade. Nós, de Época São Paulo, queremos ter o melhor dos dois mundos."
            Os militantes de Época São Paulo percorreram esse objetivo por 67 edições. No editorial da última edição, sem saber da iminência do desfecho, o diretor Celso Masson citou uma enquete feita no site da revista com a pergunta "O que você gostaria de ganhar neste Natal?". Se a campeã entre as respostas foi uma viagem à Europa, o segundo lugar foi conquistado por uma alternativa inusitada: um abraço. "A grande surpresa foi constatar que 14% dos que responderam à enquete gostariam de ganhar um abraço", escreveu ele. "Símbolo de carinho, acolhimento e afeição, o abraço desejado pelos internautas pode ser entendido como uma declaração de paz num ano marcado por ondas de violência de um tipo inédito na cidade". Logo adiante, no parágrafo seguinte, profetiza o canto do cisne: "Talvez a opção pelo abraço seja, ainda, a esperança de que dias melhores virão. Tomara que venham mesmo."
            Aos mais de 50 profissionais que fizeram Época São Paulo e conviveram comigo nos corredores da revista a longo dos cinco anos em que estive lá, deixo também meu abraço. E faço coro com os votos de Celso Masson. Tomara.

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