terça-feira, 29 de setembro de 2009

Lie to me

Tenho visto vários anúncios da série Lie to me, exibida pela Fox, publicados em jornais e revistas. O olhar circunspecto do protagonista, ao qual nada parece escapar, nos fita da página impressa. E absorve. Como se nos traduzisse de cabo a rabo em poucos segundos.


Não conheço a série. Grosso modo, nem sei ao certo do que trata. É a frase em letras grandes, e não propriamente a produção televisiva, que me chama atenção e intriga: "Minta para mim". Na maioria das vezes, o título é sublinhado por uma rápida linha-fina: "A mentira mostra a sua cara". Lembro imediatamente do verso-manifesto berrado por Cazuza no final dos anos 80: "Brasil, mostra a sua cara, quero ver quem paga pra gente ficar assim". E não consigo disfarçar um sorriso, de hilária indignação, ao substituir a palavra "Brasil" pela palavra "mentira" como se ambas fossem bloquinhos de montar, cambiáveis e equivalentes. Como se "Brasil" e "mentira" fossem sinônimos. Será que o Brasil, este colosso, tem as pernas curtas?
Mentira é coisa chata, coisa triste, coisa que nos emputesse ao ouvir e, principalmente, ao dizer. Pelo menos a mim. Tenho pensado no assunto. Recentemente, li um microconto assinado por Samir Mesquita (www.samirmesquita.com.br) e publicado em um microlivro nada convencional chamado Dois Palitos. Em formato de caixa de fósforos, na qual se esconde uma brochura minúscula, o livro tem 50 páginas, cada uma dedicada a um conto com no máximo 50 palavras. O tal conto, que me chamou atenção, diz exatamente o seguinte:


O escritor, ao menos o de ficção, é esse mentiroso compulsivo, esse construtor de castelos etéreis edificados sobre sonhos e ilusões. Escritor, Samir sabe disso. E admite sem rodeios, enquanto eu, aprendiz de feiticeiro, reluto em vestir a camisa. Fiquei incomodado com aquelas palavras. Não quero me considerar um mentiroso. E passei a olhar para dentro. Para dentro e para trás.
Aprendi a mentir recentemente. Talvez por estar cada vez mais próximo da literatura, esboçando agora meu primeiro romance. Ou, talvez, eu tenha percorrido o sentido inverso: a experiência de aprender a mentir teria me habilitado à escrita ficcional, conduzindo-me por esse saboroso caminho de personagens e tramas. A pulga, no entanto, continua atrás da orelha.
Mentir é uma merda. Escrever é uma delícia. Como pode?
Mentir desloca o olhar (envergonhado). Escrever põe brilho nos olhos (ávidos).
Mentir faz o coração tropeçar e perder o ritmo. Escrever devolve ao coração o ritmo, o tom, a intensidade, a intenção.
A mentira é sempre conservadora. Mentimos para preservar - pessoas que amamos, situações, relacionamentos e, acima de tudo, nossa própria imagem. "Mentiras sinceras me interessam" é outro verso eternizado por Agenor de Miranda Araújo Neto, o mestre-Cazuza.
A escrita, por sua vez, é por definição revolucionária - nos permite extrapolar limites, redefinir papéis e forjar o futuro.
Aprendi a mentir recentemente, repito, e não tenho nenhum orgulho disso. Pessoas mentem por medo, por fraqueza, por presunção, por paixão, por comiseração, por vaidade. Mentem para justificar uma falta à escola ou ao trabalho. Mentem para faturar uma garota ou dispensá-la. Mentem para prolongar um casamento em ruínas. Mentem para não sofrer (e para evitar que pessoas queridas sofram tanto quanto elas). Mentem para se desculpar por terem se ausentado de uma festa à qual não pôde ou não quis comparecer. Comigo não foi diferente. Até atendendo a pedidos acabei mentindo, cúmplice na trama rascunhada por companheiros, correligionários, comparsas.
Não quero mais. Solenemente, abdico desse aprendizado, desse dom adquirido. E retomo, aqui, minha sincera opção pela verdade, leal como sempre fui, revolucionária e libertadora como a boa literatura.
Mas continuarei escrevendo...

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Troca de gentilezas

"Ele é viado e fuma maconha". O dono da frase poderia ser um carola de igreja, desses que papam mingau de hóstia no café da manhã. Também poderia ser um desses policiais rudes que fazem bico de leão de chácara em porta de boate e, durante o dia, malham até as orelhas em uma academia de fundo de quintal, doidos para descer o cacete em um larápio qualquer. Mas não: foi proferida por um governador de estado, chefe do executivo sul-mato-grossense, representante do poder Executivo eleito pelo povo e diplomado em solenidade pública perante o Legislativo. O alvo? O ministro do meio ambiente.


André Puccinelli parece ter perdido a razão. Ou, talvez, nunca tenha tido. Reagiu com as gentilezas acima ao ser questionado por líderes do comércio e da indústria local a respeito da recente decisão, conduzida pelo ministro Carlos Minc, de vetar o plantio de cana de açúcar em certas áreas do estado próximas ao Rio Paraguai. Ruralista e defensor dos latifúndios canavieiros - daqueles que acham que o ideal do Brasil é mesmo se tornar um "imenso canavial" - Puccinelli não poupou escatologia ao disparar seus petardos contra o ambientalista. Em seguida, por mais incoerente que possa parecer, ameaçou abusar sexualmente do mesmo ministro: "Se ele viesse (a Campo Grande), eu correria atrás dele e o estupraria em praça pública", afirmou.


Quem tem 30 anos ou mais provavelmente se lembra de uma frase famosa, dita em 1989 por um político com ideias semelhantes às exibidas por Puccinelli, que instruía bandidos a, havendo a necessidade íntima de cometer violência sexual, o fizesse sem colocar em risco a vida da vítima. "Tá com vontade sexual, estupra, mas não mata", eram os termos exatos. Já quem tem menos de 30 anos está cansado de saber que toda manifestação depreciativa em razão de orientação sexual, cor ou credo, entre outros aspectos, é passível de punição penal. Pelo menos na teoria.
Em vez de continuar à frente do governo, fazendo retumbar suas bravatas de menino-macho, talvez fosse hora de o homem da cana entrar em cana, devidamente emparedado pelo Ministério Público e lacrado pelo Supremo Tribunal de Justiça. Triste o país que não leva adiante sua indignação com as habituais afrontas feitas aos direitos humanos, comuns inclusive entre seus dirigentes. Algumas afrontas, a história mostra, estupram e matam.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

O funcionário mais antigo

O metrô de São Paulo completou 35 anos de operação comercial no dia 14 de setembro. Fui à estação Paraíso conferir o palanque armado pelo Governo do Estado para comemorar a data. O povo do palácio dos Bandeirantes está em polvorosa com o assunto. Até o ano que vem, afinal, o metrô promete inaugurar nove estações: Sacomã, Vila Prudente e Tamanduateí, na linha verde, e Luz, República, Paulista, Faria Lima, Pinheiros e Butantã, na esperadíssima linha amarela.


De olho nas eleições de 2010, uma penca de deputados, estaduais e federais, perfilou-se ao lado de Serra e Kassab para aparecer nas fotos oficiais. Dali, todos puderam ouvir quando o mestre de cerimônias chamou ao tablado o funcionário mais antigo ainda em atividade na Companhia do Metropolitano de São Paulo para receber uma homenagem das mãos do governador.
Fiquei entusiasmado com a possibilidade de entrevistá-lo. Em qual setor ele trabalharia? Qual seria o número de matrícula e a data de admissão daquele simpático senhor? Que histórias guardaria do tempo em que o bilhete custava Cr$ 1,50 e toda a malha viária da cidade se resumia aos 7 quilômetros que separam as estações Jabaquara e Vila Mariana, as primeiras a serem inauguradas?
Atravessei a claque para me aproximar do personagem, que já descia pela extremidade oposta à que eu estava. Meio esmagado no meio do público, gesticulava para chamar a assessora de imprensa e solicitar uma entrevista com o cara quando ouvi um diretor do metrô reclamar com uma das responsáveis pelo cerimonial:
- Pô, sacanearam o Tizzle. Ele podia ter falado "um dos funcionários mais antigos", e não "o funcionário mais antigo".
Cheguei mais perto para assuntar. De bloquinho na mão, a moça fez que não entendeu e pediu explicações.
- Ora, o funcionário mais antigo em atividade é o Ernesto Tizzle, você sabe. Ele é do meu departamento. Mas não pôde vir porque está de férias em Natal. Chegou a ser convidado para esse evento, mas já havia comprado as passagens.
Me apresentei ao diretor e perguntei se ele podia me ajudar a entrar em contato com o tal Ernesto, mesmo que por telefone, durante as férias. Mas logo a assessoria de imprensa se acercou da gente e, pelos olhares, notei que havia baixado a censura.
- Não sei, fica difícil, ele está de férias, não tenho o celular...
Voltei para a redação pensando nesse homem. E também no colega que, a pedido da direção ou da gerência da empresa, obriga-se ao papel de se fingir de "mais antigo" a fim de garantir à macacada o benefício dos confetes. Provavelmente, o cara é o segundo ou o terceiro na linha sucessória, membro honorário do conselho dos anciãos. Não precisava ser obrigado a isso...
Um homem é rapidamente esquecido, veja você. Basta sair de férias. O outro vira ícone, é entrevistado, posa para fotos e sai nos jornais. A notícia em primeiro lugar! Ou a campanha eleitoral, dependendo do ponto de vista.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Ótimo pra embrulhar peixe

Contribuição de Mario Benedetti, descoberta ontem em seu belo A Trégua. O parágrafo, aplicado à realidade uruguaia, nos torna menos solitários e surpresos perante o espasmo editorial que sentimos ao ler, diariamente, a Folha, o Estado, o Globo, o JB, o Diário... não necessariamente nesta ordem:
Há dias em que compro todos (os jornais). Gosto de reconhecer suas constantes. O estilo de cabriola sintática nos editoriais de El Debate; a civilizada hipocrisia de El País; a maçaroca informativa de El Dia, só aqui e ali interrompida por uma ou outra alfinetada anticlerical; a robusta compleição de La Mañana, vaquinha de presépio que só ela. Como são diferentes e como são iguais! Entre eles, jogam uma espécie de truco, enganando uns aos outros, fazendo-se sinais, trocando de parceiros. Mas todos se servem do mesmo maço, todos se alimentam da mesma mentira. E nós lemos, e, a partir dessa leitura, acreditamos, votamos, discutimos, perdemos a memória, esquecemos generosa e cretinamente que eles hoje dizem o contrário de ontem, que hoje defendem ardorosamente aquele de quem ontem disseram coisas terríveis, e, o pior de tudo, que hoje esse mesmo aquele aceita, orgulhoso e ufano, essa defesa.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Trinta

Fiz trinta anos no último sábado.


Uma amiga me mandou um e-mail dizendo que a vida começa aos 30. Fiquei indignado: "mas e tudo o que eu vivi até agora, nada disso conta?"
Um amigo, prestes a completar 37, afirmou que 30 é muito melhor do que 20. Segundo ele, aos 30 a gente já tem nosso espaço, já está ganhando algum dinheiro, já fez alguma coisa bacana...
Pensei um pouquinho e, sem querer defender os 20 em detrimento dos 30, disse apenas o seguinte: "aos 30 a gente já definiu um monte de coisas nas nossas vidas; e isso é bom. Mas a busca, a procura, essa permanente descoberta do mundo que marca nossas vidas aos 20, tudo isso é muito bom também."
Um deprimido Renato Russo cantou, certa vez, que havia decidido começar a viver aos 29, com o retorno de Saturno. Definitivamente, não é o meu caso. Tenho vivido há muito tempo (okay, 30 anos não é tanto tempo assim...). Mas curto a ideia de decidir viver a cada dia, a cada segundo.
Começo a viver ao iniciar um post.
Começo a viver ao conclui-lo.
Começo a viver ao iniciar o próximo.
Acho que o mais legal nessa história de fazer anos é a gente saber ter 20 anos aos 20, 30 anos aos 30, 40 aos 40 e assim por diante.
Aproveitar a delícia de cada etapa.
E comer o bolo fatia por fatia.

domingo, 6 de setembro de 2009

Revidar pode, senhor gerente?

Sexta-feira, 4 de setembro, 8h05.
Uma mensagem com o título Camilo urgente surge no alto do meu Gmail. É do editor Cláudio Brites, da Editora Terracota, que publicou o livro Território V, organizado por Kizzy Ysatis:
"Camilo, espero que leia este e-mail rápido.
Kizzy estava em uma balada, A Loca, com a Liz Vamp.
E por conta de problemas que eu ainda não entendi, ele foi espancado e a Liz também. Segundo ele, chegou a perder dentes, está bem mal.
Ele queria saber se você, como repórter, não pode ir, ou mandar alguém ir lá fazer essa denúncia, registrar isso.
O celular dele é XXXXXXXX. O meu XXXXXXXX.
Abraços,
Cláudio Brites"


Em quinze minutos, eu teria de sair para uma pauta. E ainda estava de pijamas. O máximo que consegui fazer, naquele momento, foi mandar um torpedo para um conhecido do JT, a primeira pessoa que me veio à cabeça, contando o episódio e fornecendo os telefones. Passei o resto do dia na rua, em três reportagens diferentes, torcendo para pintar um intervalo que me permitisse ligar para o Kizzy. Quando consegui, o celular dele já estava desligado, provavelmente sem bateria.
Antes disso, mais ou menos na hora do almoço, no meio de um congresso de coloproctologia (afe!), atendi a um telefonema do irmão dele. Kizzy fazia exames na Santa Casa de Misericórdia. Esmurrado pelos seguranças da boate por volta das seis e meia da manhã, perdera um dente e exibia hematomas por todo o rosto. Liz Vamp, sua amiga, também fora agredida. A origem do conflito fora uma prosaica confusão na hora de pagar a conta: o funcionário dizia que ele ainda não havia quitado sua despesa, enquanto o cliente afirmava ter pagado, em dinheiro vivo, minutos antes.
Kizzy não é do tipo que leva desaforo pra casa. Nem do tipo que abaixa a cabeça para evitar barracos ou constrangimentos. Ele grita, se for preciso, e roda a baiana com a altivez de quem conhece seus direitos e exige respeito. Imagino que os seguranças da casa, beneficiados pela plateia viciada (àquela hora, quase que exclusivamente formada pelo staff do estabelecimento e parcos fregueses cativos), devem ter proferido as habituais grosserias de quem aprendeu nos tempos de corporação a fazer da violência física sua mais preciosa qualidade. E ouviram, provavelmente, uma resposta à altura - uma resposta inteligente e sagaz, daquelas que desmontam qualquer argumentação que não seja edificada com a mesma inteligência. Nessas horas, a alternativa é espancar. Isso essa gente faz com maestria.
Não foi a primeira vez que ouvi o relato de que um conhecido meu tivesse levado socos de seguranças da Loca. Lembro de uma história parecida, envolvendo um amigo jornalista, que uns seis ou sete anos atrás teria sido expulso aos murros sob a acusação de ter consumido maconha ali dentro ou qualquer coisa parecida. O fato é que, no final da tarde de sexta-feira, a notícia da agressão a Liz (cineasta, filha do José Mojica Marins) e ao Kizzy (o escritor Cristiano Marinho) já havia se espalhado. Estava no G1, no Uol, no Terra, na Folha Online. Em muitas das notas publicadas, constava a informação de que, ao prestar depoimento na delegacia, o gerente da casa teria afirmado que apenas revidara as agressões dos clientes. Revidar pode, senhor gerente? E revidar a que tipo de agressão? Revidar com socos e pontapés a uma afronta verbal? Ou foram os clientes que partiram antes para a violência física? Porque, se for esta a sua versão, ela não se sustenta, meu caro. Por certo o senhor não conhece o Kizzy.
Eloquente e intenso, muitas vezes grandioso em seus gestos e em seus arroubos literários, Kizzy é uma moça, um pássaro no sereno, gentil e delicado como apenas os poetas conseguem ser. Provavelmente, seus funcionários revidaram ao timbre firme com o qual o tal cliente denunciava a incompetência de uma casa que não consegue saber quem pagou e quem não pagou a comanda. E o fizeram do jeito que lhes pareceu mais apropriado: combatendo palavras com escoriações. Talvez os seguranças tenham se excedido um pouquinho. Talvez. Ou então, os hematomas e a fratura craniana sofridos pelo Kizzy sejam respostas à altura dos impropérios que o cliente, eventualmente, possa ter lhes berrado. Revidar pode, não é mesmo? Foi o senhor mesmo quem falou.
Bom, quem quiser ler o que o próprio Kizzy tem a dizer sobre o episódio - e tiver estômago para conferir, em imagens, o estado em que ele ficou após os golpes - acesse seu blog: http://kizzyysatis.blogspot.com. Triste o lugar em que corremos o risco de ser agredidos justamente por quem deveria zelar pela nossa segurança, nossa integridade.