domingo, 30 de agosto de 2009

A simbologia de uma placa

Sempre me incomodou saber que mais da metade dos projetos de lei aprovados no Brasil não passa de despachos para dar nome de fulano a uma rua, de cicrano a uma praça ou de beltrano a uma ponte. Principalmente quando me deparo com a proliferação de nomes que nada significam para mim (enquanto tanta gente digna de homenagem ainda não conseguiu batizar um beco sequer). Melhor seria se o Poder Legislativo proibisse nomes de gente nas vias públicas, tornando compulsória a adoção de nomes de flores, aves, paisagens, sentimentos. Eu, pelo menos, não acharia ruim avançar pela Avenida Begônia, virar à direita na Rua do Bosque, cruzar o Parque do Ipê, tomar a Rua Gavião à esquerda e, no final da ladeira, estacionar em frente à Praça Mantiqueira.
Na semana que passou, no entanto, pude ver o quanto a alteração no nome de uma rua pode ser essencial para a auto-estima de seus moradores e, acima de tudo, para que possamos celebrar, passo a passo, o iminente resgate da memória nacional e a tão sonhada conquista da cidadania. Na segunda-feira 23, em São Carlos (SP), foram inauguradas as primeiras placas com o nome de Dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife que, nos anos 70, firmou-se como um dos mais ativos arautos do combate à ditadura. Meses atrás, a Rua Dom Hélder Câmara tinha outro nome, de triste lembrança: Sérgio Paranhos Fleury.


Que justificativas poderia ter um vereador de São Carlos para propor (e conseguir a aprovação!) de uma lei cuja única finalidade fosse render homenagens ao mais cruel e sanguinário torturador que o Brasil já teve? Interpretado por Cássio Gabus Mendes no filme Batismo de Sangue, Fleury comandou o famoso Esquadrão da Morte - grupo paramilitar responsável por executar criminosos (e suspeitos) como se a pena de morte pudesse ser decretada à revelia da Justiça e do Direito - e era chefe do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) no período de máxima repressão, pós-68. Sob seu comando caíram os guerrilheiros Carlos Marighella, da Ação Libertadora Nacional, e Carlos Lamarca, da Vanguarda Popular Revolucionária, entre muitos outros.
Fleury não nasceu em São Carlos, mas em Niterói, no Rio de Janeiro, e nenhuma explicação me parece razoável para justificar o nome de rua a ele atribuído. Reportagem publicada em maio de 2008 na Revista Piauí mostrou a luta de alguns moradores envergonhados para, com a assessoria de estudantes da UFSCar, rebatizar os dois quarteirões malfalados. Ninguém gosta de morar numa rua com nome de palavrão. Para promover a troca, era preciso encaminhar à vereança municipal um abaixo-assinado com as rubricas de pelo menos 75% dos moradores. Isso foi feito. E coube ao vereador Lineu Navarro, do PT, apresentar o projeto sugerindo o nome do "bispo vermelho".
Dom Hélder é vinho onde Fleury foi vinagre. Fundador da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), foi quatro vezes indicado ao prêmio Nobel da Paz. Cronista e poeta inspirador, chegaria aos 100 anos em 2009 se não tivesse interrompido sua amorosa e comprometida missão uma década atrás. Em um de seus livros, intitulado O deserto é fértil, Dom Hélder deu uma pista para entendermos, ainda hoje, o valor de se buscar a justiça e a verdade, inclusive ao escolher os nomes das ruas:
Seria razoável pensar se adianta começar a clamar, de modo pacífico, mas decidido e firme, por justiça, enquanto a própria vida ou instituições a que pertença estejam comprometidas com a engrenagem das injustiças e da opressão. Na medida em que houver sinceridade em reconhecer a contradição provisória, na medida em que houver desejo sincero de encontrar, quanto antes - para si e para as instituições a que esteja preso - os caminhos da libertação, é ótimo ir-se comprometendo com a verdade e com a justiça.
Creio que São Carlos pode se orgulhar da rua recém-nascida. Falta à capital paulista - um dia, quem sabe... - encontrar nomes melhores para o "elevado" Costa e Silva, a Rodovia Castelo Branco, e, mais urgente do que todas, a ponte General Milton Tavares de Souza, assim batizada em homenagem a um torturador contumaz, que foi chefe do Centro de Informações do Exército (CIE) nos anos 70 e comandante do II Exército no anos 80.

sábado, 29 de agosto de 2009

Ergueu no patamar quatro paredes mágicas

"Se doar, o sinal abre mais rápido". A frase, não exatamente com estas palavras, havia sido riscada a dedo no cartaz empunhado por uma jovem que, por volta da uma da tarde, pedia dinheiro na esquina da Augusta com a Paulista.
O dinheiro não era para ela, mas para subsidiar a construção de casas populares. Erguidas com paredes mágicas e destinadas a populações que moram em situação de risco nesse brasil de meu deus, as casas de madeira são feitas em mutirões por jovens voluntários da ONG Um Teto Para Meu País, entre eles a moça que empunhava o cartaz, meu amigo Felipe Mello, e minha amiga Rachel Sterman, que está preparando um livro-reportagem sobre a ONG como trabalho de conclusão de curso em jornalismo.


Hoje, foi dia de passar o chapéu - no caso, cofrinhos em forma de casinhas de madeira estilizadas. Às 8h30, topei com uma turma de voluntários da Teto na Avenida Brasil, bem em frente à igreja Nossa Senhora do Brasil. Às 13h, dei de cara com a turma da Rua Augusta. No fim da tarde, quando já havia esquecido a data, encontrei mais uma galera fazendo pedágio na Heitor Penteado, pouco acima do metrô Vila Madalena.
Espero que a arrecadação tenha sido farta. E quem não teve a sorte de encontrar os coletores por aí, sinta-se à vontade para conhecer o projeto (e fazer também sua doação) visitando o site (clique aqui). Quem sabe os sinais não passam a abrir mais rapidamente.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Êxodo

O consumo de maconha deixou de ser crime na Argentina.
Ótima notícia!
Os hermanos parecem estar mesmo preocupados com a redução do fluxo de turistas.
Deu certo.
Já tem uma galera indo atrás de passagens para Buenos Aires.
Desconfio que alguns camaradas não voltam pro Brasil tão cedo...

"Green grass, blue eyes, grey sky, god bless
Silent pain and happiness
I came around to say yes and I say.
While my eyes go looking for flying saucers in the sky."

domingo, 23 de agosto de 2009

Sacerdócio

"Medicina é sacerdócio", disse-me o oncologista Paulo Hoff na semana passada, repetindo um clichê suturado por professores de medicina desde o primeiro ano da graduação. Responsável pelo tratamento do vice-presidente José Alencar e diretor-clínico dos serviços de oncologia do Hospital Sírio-Libanês e do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, Hoff veste a batina às sete da manhã e só larga a sacristia às nove da noite. Recebe pelo menos dez pacientes por dia em seu confessionário e procura expiar pecados em forma de receitas. É adepto da "dieta do kibe" (substituição do almoço por um salgado) e só quebra os votos de ordem e celibato aos fins-de-semana, quando se permite o lazer descompromissado com a mulher e as três filhas, além de profanas partidas de basquete disputadas no Parque do Ibirapuera.
Paulo Hoff já havia me convencido de que medicina é sacerdócio quando, neste sábado, decidi tirar o atraso da semana e, com a Época e a Veja nas mãos, fui ler o que havia a meu alcance sobre Roger Abdelmassih.


Maior nome em reprodução assistida no Brasil, Roger Abdelmassih está preso em São Paulo, acusado de cometer mais de 50 crimes sexuais contra mais de 30 mulheres ao longo dos últimos quinze anos. Com um histórico de mais de 5 mil bebês "concebidos" em sua clínica (a marca foi comemorada com festa em 2006), Abdelmassih descartou há muito tempo a alcunha de sacerdote por não lhe parecer suficiente. Em sua potência, é ele a própria divindade. "Doutor-Vida" foi um dos apelidos auto-atribuídos pelo médico ao longo de sua carreira. Em 2004, quando tive a oportunidade de entrevistá-lo, lembro de ouvir brincadeiras sobre isso. Convidou-me para ver, ao microscópio, o momento em que um óvulo era fecundado e, sorrindo, disse qualquer coisa como "pronto, fez-se a vida". Também lembro de ter me assustado ao ouvir algo como "aqui a gente trabalha para corrigir deslizes cometidos por Deus". Minha pauta, na ocasião, era uma técnica de manipulação genética que ele começava a praticar e que, supostamente, permitiria a adultos soropositivos gerarem filhos biológicos sem o vírus da Aids. Não levei o assunto adiante, não me recordo por quê, e a matéria nunca saiu.
Roger Abdelmassih sempre se orgulhou de trabalhar com belas assistentes e, naquele mesmo dia, confessou-se satisfeito por ter uma clientela, digamos, bem apessoada. "Não é todo mundo que tem a chance de gerar filhos em tantas mulheres bonitas", brincou mais uma vez. O que eu não podia desconfiar, ali, era que aquele senhor corpulento e de bigodes transitava entre a realidade e a ficção com mais agilidade do que os melhores romancistas. E que, de maneira violenta e enojante, chegava mais perto de realizar essa sombria obsessão do que poderia sugerir seu ríspido humor.
Funcionava mais ou menos assim. O casal interessado em ter filhos contratava um pacote, normalmente de três tentativas. Pagava cerca de 40 mil reais pelo tratamento (ou 30 mil em dinheiro, sem recibo). Em cada tentativa, a mulher era sedada para a punção do óvulo, que seria fecundado e laboratório e reinserido no dia seguinte. Ao se refazer do efeito do sedativo, algumas mulheres lembram ter despertado com o médico debruçado sobre sua cama, acariciando-lhe os seios por sob o avental. Algumas dizem ter acordado com a mão envolvendo o pênis do médico. Três pacientes teriam sido penetradas, ainda sob o efeito do sedativo. Uma delas acredita ter havido intercurso anal. Muitas juram ter sido prensadas contra a parede e beijadas na boca quando plenamente acordadas: estranha maneira que Abdelmassih encontrava para "comemorar" um resultado positivo (ou, pelo menos, a conclusão de mais uma tentativa).
A perversão, aliada a uma alta dose de delírio, fez com que o médico-monstro transformasse os atos libidinosos em rotina. Sua divindade era realçada pela conjuntura: mulheres fragilizadas e casais ressequidos após muitos anos de gestações adiadas ou interrompidas depositavam no doutor o que ainda lhes restasse de fé e esperança. Era ele uma espécie de ente mágico capaz de realizar o sonho mais punjante daquela mulher (daquele casal) e expurgar a frustração por ter se descoberto estéril, o que não costuma ser uma notícia de fácil apreensão para a maioria de nós. Sendo assim, a fantasia de acalentar um bebê, de embalar o sorriso mais delicioso do mundo, encobririam a humilhação vivida. E, no tênue momento em que o óvulo fecundado ainda é uma possibilidade, às vezes ainda sob a guarda da clínica, o abuso desponta como o preço do resgate: "se eu perder a calma agora, e provocar um escândalo, porei a perder minha última chance de maternidade". Fora isso, como em quase todos os crimes sexuais, não há evidências. E, até janeiro deste ano, todos eram capazes de dizer quem venceria a guerra entre a palavra do médico e a palavra da paciente.
Fico imaginando o produto dessas denúncias em todos os casais que se submeteram à reprodução assistida na clínica do Doutor-Vida. "Será que eu também fui abusada?" ou "Será que a minha mulher foi uma das vítimas?" devem ser fantasmas muito presentes. Se trinta e poucas mulheres, encorajadas pela avalanche de acusações, procuraram o Ministério Público para denunciar o médico, é óbvio que outras dezenas, quiçá centenas, não têm a mais remota ideia do que pode ter lhes acontecido sob o efeito do tal sedativo. Filhos gerados na clínica talvez sejam alvejados por dúvidas semelhantes. "Minha mãe teve de passar por isso para que eu pudesse nascer?" Que efeito esse tipo de questionamento é capaz de produzir na vida dessas pessoas? Se houver algum profissional da comunidade psi lendo esse alongado texto, convido-o para me dar alguma pista incluindo-a ali embaixo, no campo dos comentários.


Ainda na sexta-feira passada, a clínica de Roger Abdelmassih amanheceu pichada. O muro branco do casarão da Avenida Brasil é decorado, agora, com as palavras "Velho Safado". Para quem até recentemente se proclamava Doutor-Vida, acostumar-se ao novo apelido será questão de tempo. Exigirá, sim, alguma dose de humildade, abnegação e sacerdócio - elementos que não devem faltar a um Deus como ele.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Sede ou água?

Contribuição de Antonio Machado numa manhã fria de sexta-feira. A estrofe faz parte do poema Del Camino, publicado na primeira década do século XX:

Arde en tus ojos un misterio, virgen esquiva y compañera.

No sé si es odio o es amor la lumbre inagotable de tu aljaba negra.

Conmigo irás mientras proyecte sombra mi cuerpo y quede a mi sandalia arena.

- ¿Eres la sed o el agua en mi camino? Dime, virgen esquiva y compañera.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Mais histórias do Haiti

Os leitores deste blog talvez se recordem de um post publicado há pouco mais de um mês com o título Pense no Haiti, reze pelo Haiti. Nele, eu resumia alguns causos de viagem que me haviam sido contados pelo amigo Victor Ferreira sobre sua jornada de quatro dias pelos (esperançosos) escombros de Porto Príncipe. Tive de me conter, na ocasião, para não fornecer o serviço completo e virar escriba de repórter. Quem teria de contar as histórias de lá era ele mesmo, mais ninguém. Pois foi o que o moço fez. Seu relato e suas fotos viraram matéria de capa da Revista Brasileiros deste mês, nas bancas. Destaco um único parágrafo, com o acre sabor de colapso social e revolta que, acredito, irmanam leitor e cronista na aventura de Victor:
Violência eu não vi de perto. Mas assisti a cenas miseravelmente dolorosas. Como quando duas crianças fizeram montinhos de terra, untaram com água suja, moldaram num formato qualquer e colocaram ao sol. Até que uma delas pegou o "bolinho" mais maduro e mandou boca adentro. Era o almoço daquele dia. Não tive reação. Eu estava ali para contar essas histórias, mas preferia que elas não existissem.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

O tempo de uma dedicatória

Fiquei pouco mais de duas horas na Livraria Martins Fontes. Duas horas e meia, no máximo. Parece muito. E seria, evidentemente, para qualquer leitor ou visitante que se propusesse a folhear livros ou a buscar um rosto conhecido entre os autores presentes. Mas para alguém como eu, um falso extrovertido que finge encarar com naturalidade situações como palestras, mesas redondas e lançamentos de livros, acaba sendo tudo muito rápido. Rápido por não termos tempo de nos acostumar ao ambiente e nos sentir à vontade, e não por ser gostoso demais e nos dar vontade de eternizar o momento (como normalmente ocorre em namoro recente ou diante de um pavê de chocolate daqueles que só as nossas avós sabem fazer). Rápido porque notamos a aproximação de algumas pessoas queridas, algumas que não vemos há anos, e não temos mais do que dois ou cinco minutos para elas. O tempo da conversa é o tempo da dedicatória. E quanto tempo se gasta para se escrever uma dedicatória?


Andei pensando sobre isso. Que tipo de coisa vale escrever para um leitor que não te conhece? Um deles, juro, pediu que eu não apenas fizesse uma dedicatória, mas fizesse também um desenho. Logo eu? "Vale qualquer coisa", ele disse. Rabisquei lá a qualquer coisa que ele queria. E achei curiosíssimo. Quem sabe um dia eu não pego o Milton Hatoum de jeito, ou o Moacyr Scliar, e os convenço a me fazer um desenho. Bom, pelo menos ele não me pediu um carneiro. Outra leitora se aproximou, checando se eu era de fato autor de um dos contos, e confessou seu orgulho nos dois minutos que levei para dedicar meu texto a ela. "Meu filho está ali na mesa, é um dos autores, tem apenas 18 anos e este é seu primeiro texto publicado." Meus parabéns! Creio que era Angélica o seu nome (o que não deixa de ser também inusitado, uma vez que o meu conto se chama Anjo da Guarda e um encontro de vampiros não é exatamente o lugar mais convencional para se encontrar pessoas angélicas).
Com os amigos, a coisa fica mais complicada. Reinaldo, meu tio, teve de ir embora antes que eu chegasse. Isso significa que fiquei lhe devendo um autógrafo. E também que terei tempo de sobra para fazê-lo (eu acho). Maíra e Luanda, minhas irmãs de vinte e poucos, se aproximaram com um exemplar. Ora, irmã não foi feita para receber dedicatória em livro. Irmã foi feita para se dizer as coisas frente a frente, dar um empurrãozinho ou uma reconfortada quando a situação pede, ou uns safanões quando necessários. Não tenho a menor ideia do que ficou gravado naquela página. A Tiche trouxe a Amanda, outra irmã, uma que eu ainda consigo levantar no colo. Aos oito anos, ela apontava uns autores vestidos de preto, com unhas pintadas, e queria saber quem ali era vampiro de verdade. Essa vai ter de esperar um pouquinho para ler esse livro.
Aline apareceu para me dar apoio. Não conta. Ainda estou devendo um livro para ela. O Felipe Gombossy não me engana: foi lá para retribuir minha presença na vernissage da exposição de fotos dele no mês passado. Mas o cara é gente fina. E acabamos conversando sobre Foz do Iguaçu, onde ele nasceu e de onde acabou de chegar. Dizem que os vampiros de lá são craques em muambas e se alimentam de sangue falsificado. Mas o que eu queria mesmo era saber como estão os preparativos do casamento dele. O Nepô chegou com a Andréa. Ou foi a Andréa que chegou com o Nepô? Não interessa. Pai e filha são amigos muito queridos, provavelmente as pessoas de quem eu tenho as mais antigas lembranças excetuando-se meus familiares. Conheço-os desde os meus cinco anos e, como quase não nos vemos mais, sinto saudade com frequência. Com eles, até tentei escutar o que me diziam sobre o Tom, filho e irmão estudante de jornalismo que está de estágio novo. Mas a dedicatória termina logo. E a cabeça se divide entre a conversa truncada, as palavras rabiscadas em pé, os outros amigos que se aproximam...
Samuca, Nath e dois Felipes cruzam a porta. Esses são especiais. Especiais porque formam um pouco da ração do meu dia a dia. Quem passa oito horas ou mais, todos os dias, numa redação, aprende a se apoiar e se alimentar das expressões e dos gestos de quem vive ao redor. No meu caso, tenho o Samuca à minha frente e a Nath a meu lado, como se ambos ocupassem casas brancas de um tabuleiro de xadrez e eu vivesse numa casa preta. Ou vice-versa. É o tipo de simbiose em que um espirro é registrado, uma dúvida é espontaneamente perguntada, e nenhuma conversa ao telefone consegue passar despercebida ou em sigilo pelo outro. Alguém acha justo resumir uma dedicatória a esse tipo de amigo a três linhas mal traçadas, principalmente quando a caligrafia é uma desgraça e a ansiedade só piora as coisas?
De repente, o Alê se aproxima. Com a mulher e duas filhas pelas mãos. Outra viagem no tempo. Alê foi meu professor de artes no ginásio e me dirigiu como ator de teatro durante dois anos, entre 1995 e 1996. Aprendi muita coisa com ele, sobre o teatro do absurdo, sobre cinema e crítica cultural, e especialmente sobre a convivência entre lúdico e burlesco em todos os setores da vida humana, o barato de não se levar tão a sério, a poesia do cafona e a cafonice do poeta, e mais uma porção de coisas que não cabem em um post. Ele me conta que a filha está aficionada por histórias de vampiro e, após cinco anos desde nosso último encontro, sou obrigado novamente a reduzir o papo para fazer a fila andar.
Acho que ainda vou precisar comer muito feijão para me tornar minimamente simpático e à vontade em um lançamento de livro. Ainda bem que, por enquanto, não tenho nenhum outro a caminho.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Vampiros em guerra

Agosto chegou e o dia 13 se aproxima. É tempo de homem virar lobo, cachorro comer terra, maranhenses fincarem pé no Senado e, acima de tudo, vampiros levantarem de seus caixões e marcharem pela Avenida Paulista. Uma porção deles estará reunida ali, na Livraria Martins Fontes, quase na esquina com a Rua Brigadeiro Luiz Antônio, ao anoitecer do dia 13. O motivo é nobre, coisa de imortal letrado que curte literatura. Quando o carrilhão indicar sete badaladas, será lançado o livro Território V (Ed. Terracota), organizado pelo escritor paulistano Kizzy Ysatis. Todos os 19 contos que compõem o volume são inéditos e têm como tema "vampiros em guerra". Um deles, com o título Anjo da Guarda, foi escrito por mim.


Os vampiros estão na moda, todos sabem. A bem da verdade, faz pelo menos 200 anos que os vampiros estão na moda. Mas não é todo dia que essas fascinantes criaturas das trevas dão as caras nas listas dos livros mais vendidos e dos DVDs mais alugados, tampouco na grade de programação da TV a cabo, como tem acontecido em tempos de Crepúsculo e True Blood. Pois bem. E como fica a produção nacional sobre o tema? O que os ficcionistas brasileiros têm a acrescentar à hagiografia de Drácula e seus sucessores? Uma amostra dessa literatura vampírica poderá ser conferida por quem aceitar meu convite e vier ao lançamento, na próxima quinta-feira, das 19h às 21h30.

Dez dos contos incluídos na seleção foram escritos por autores convidados por Kizzy, como Flávia Muniz e Giulia Moon. Os outros 19 foram selecionados por ele entre centenas de textos que lhe foram enviados, de diversos cantos do país, numa espécie de concurso para eleger os melhores. Eu, que nunca havia publicado um conto e jamais escrevera algo sobre vampiros, entrei nessa por acaso, a convite do organizador.

Conheci Kizzy em 2002, quando o entrevistei para uma matéria publicada na ISTOÉ. Ele ainda não havia publicado nenhum livro na ocasião, nem havia raspado seus caninos para torná-los pontiagudos (sim, o rapaz possui presas assustadoras!). Mas já gostava de vestir roupas vitorianas, mergulhar em histórias de terror e sonetos românticos, e destilar o estranho hábito de visitar cemitérios para escrever e desenhar. Foi no Cemitério da Consolação que nos encontramos, ele de capa preta e lente de contato branca, eu de bloquinho e caneta nas mãos. Max G. Pinto fez a bela foto que ilustrou a reportagem, com Kizzy ao centro, empoleirado em uma tumba, ladeado pela irmã e por um amigo, ambos devidamente trajados de modo funesto. Anos depois, Kizzy publicou seu primeiro livro, Clube dos Imortais (Ed. Novo Século), e ganhou até prêmio com ele, o que me inspirou a retomar o assunto em nova reportagem, de 2006, recorrendo mais uma vez à mesma fonte. Dessa vez, Kizzy foi fotografado por Biô Barreira no estúdio da Editora Três, com um casal de amigos também entusiasta do tema. A imagem está reproduzida abaixo. Kizzy é o cara com a cartola.


Quando, no ano passado, ele me fez o convite para integrar a antologia, aceitei de pronto. Optei por levar meus vampiros ao semi-árido nordestino e narrar a batalha pela ótica de uma mulher, viúva, carente de perspectivas, que gasta suas noites ao balcão de uma birosca encravada na única rua que corta o vilarejo. Entreguei a Kizzy, por e-mail, uma história de amor, muito mais do que uma história de luta ou de medo. Mas quem ousaria afirmar que o amor não mete medo nem está na raiz de grandes disputas? Espero você na próxima quinta-feira, dia 13, quando o carrilhão indicar sete badaladas.

domingo, 2 de agosto de 2009

À Deriva

Fui assistir ao filme do Heitor Dhalia. Saí da sala encantado com a atuação de Laura Neiva. Em seu primeiro papel no cinema, a jovem interpreta a protagonista Filipa, uma garota de 14 anos que, em férias na praia, descobre que seu pai tem uma amante. Testemunha da iminente separação de seus pais - envoltos em uma crise conjugal sem intervalos nem perspectivas -, a menina se convence de que o motivo do distanciamento entre os dois é a tal namorada (só pode ser, não há outra explicação!) e, com a intensidade característica da adolescência, prontifica-se a fazer o possível para salvar o casamento.


As ondas do mar de Búzios conduzem o rito de passagem de Filipa. Aos 14 anos, à deriva como sugere o título, a garota conhece não apenas o amor, o ciúme e o sexo (apresentados a ela não necessariamente pelo mesmo parceiro), mas todo um arsenal de sensações e armadilhas que um casamento (um coração?) é capaz de encerrar. Através do olhar de Filipa, o espectador entende que o "motivo" do distanciamento entre pai e mãe não é aquele que supunha, até porque um casal não precisa de "motivos" para se distanciar. Através do olhar de Filipa, o espectador descobre que não há culpados e vítimas no instável jogo das paixões. Não há bandidos e mocinhos. Tampouco vencedores e vencidos. Através do olhar de Filipa, o espectador aprende que amor é brincadeira de adultos. E mesmo os adultos costumam se queimar...

Fui assistir ao filme do Heitor Dhalia sem saber exatamente qual a trama. Confesso ter ficado um pouco constrangido quando me dei conta do tema. Casado há cinco anos, experimentei recentemente minha primeira grande crise conjugal - e ainda tenho agido, às vezes, como quem pisa de leve para testar a segurança do terreno antes de transferir o peso e concluir o passo. Convidar Aline para ver um filme sobre a agonia de um casamento certamente não foi a atitude mais prudente que eu poderia ter tomado numa noite de sábado. Mas é na imprudência que reside o fascínio do autêntico, do visceral, do inesperado. Em alguns momentos, durante a sessão, nossos olhares se cruzaram como se dissessem um ao outro: "tá tudo bem aí?", "sim, tudo certo, não se preocupe". Permanecemos na sala até subirem os créditos, o que pode ser interpretado como uma espécie de vitória. E, para ser sincero, fazia tempo que não nos abraçávamos com tanta força durante a exibição de um filme. Bom sinal. Embora, para mim, o amor continue sendo brincadeira de adultos.