segunda-feira, 11 de outubro de 2010

O aborto e o retrocesso

Eu sou a favor da descriminalização do aborto. Também sou favorável à adoção de crianças por casais homoafetivos, ao uso de preservativos e ao sexo antes do casamento, embora nada disso venha ao caso. Conheço algumas mulheres que abortaram e posso afirmar que nenhuma delas tem orgulho do que fez. A opção pelo aborto não é coisa à toa, como escolher um restaurante ou um DVD na locadora. Na totalidade dos casos, é beco sem saída, decisão extremada, eleição do "mal menor" diante de um cenário sem perspectiva. Sou a favor da descriminalização do aborto e, também, a favor da vida. As duas coisas não são excludentes como insistem os inquisidores de batina e as campanhas eleitorais. Sou a favor de uma vida mais digna para a mãe solteira que se descobre grávida do quinto filho quando a comida não chega para os quatro primeiros. E, principalmente, sou a favor de um atendimento ambulatorial decente a quem, sem o amparo da lei, continuará recorrendo a agulhas de crochê em latrinas coletivas e banheiros de rodoviária.
No Brasil, aborto é coisa corriqueira. Os ricos encontram amparo em clínicas bem aparelhadas e consultórios ginecológicos na Vila Madalena ou na Avenida Brasil. Se acontece com a filha adolescente, logo as mães se telefonam, pedindo indicação às amigas, porque há sempre uma sobrinha que passou por isso no ano passado, ou a nora. É preciso agir rápido para que o feto não chegue à décima segunda semana. E discretamente, para que ninguém fique sabendo. Bastam dois comprimidos de cytotec, um via oral e outro introduzido na vagina. Alguns médicos recomendam dobrar a dose: dois por cima, dois por baixo. Pronto. Quem não tem cytitec caça com agulha. E tome sermão religioso para causar ainda mais dor e arrependimento. Muitas vezes, não dá nem tempo de esperar o sermão e conviver com os fantasmas de um Deus severo e vingativo: a morte chega antes, travestida em hemorragia interna. Quem é mesmo a favor da vida?

Não sou a favor do aborto, mas a favor da descriminalização dele. Nenhum estudo consistente conseguiu provar, até agora, que a legalização da prática faria intensificar sua ocorrência. O que se sabe é que centenas de meninas deixariam de sangrar até a morte, sem assistência, nos grotões dos morros e dos sertões. Aborto é questão de saúde pública, não pode ser tratado como dogma cristão ou trampolim eleitoral. Muito me espanta o uso que tem sido feito do assunto na campanha deste ano. Em primeiro lugar, porque aborto é questão legislativa, impossível de ser alterada por decisão do executivo e totalmente fora da pauta. O PT está há oito anos no governo e jamais colocou o assunto na agenda; por que o faria agora? Em segundo lugar, porque esse debate, da forma como tem sido conduzido, tem causado um retrocesso enorme do ponto de vista cultural e político, patrocinado pelos mesmos setores da elite que se dizem progressistas no que tange os princípios da sustentabilidade e do liberalismo econômico. Tudo isso é muito triste. Faz encolher as liberdades individuais e amplia a tutela de um Estado cada vez mais refém da religião, do atraso e do falso moralismo. Se um segundo turno é sempre benéfico para o processo democrático, corremos o risco de desperdiçá-lo em nome de picuinhas babacas, conservadoras e totalmente fora de propósito.

domingo, 3 de outubro de 2010

Onda verde


Muito bem. Com 56% das urnas apuradas, parece que a tal "onda verde" funcionou, contribuindo para levar a eleição para o segundo turno. Ótimo para a democracia e, principalmente, para desfazer o caráter plebiscitário do pleito deste ano. Particularmente, considero a Marina uma candidata fraca, apoiada em um partido fraco, com agenda monotemática e posições atrasadíssimas em relação a temas como o aborto, embora de extrema relevância no poder legislativo. Sua participação, no entanto, foi fantástica para o processo eleitoral e trouxe uma contribuição legítima e muito bem-vinda, com temas essenciais que não serão desprezados em um eventual governo Serra nem em um eventual governo Dilma. Espero que seus eleitores escolham a melhor posição no segundo turno. Minha maior implicância com o PV foi descobrir, em frente a meu colégio eleitoral, que, a despeito do ambientalismo praticado por seus candidatos, toneladas de santinhos foram espalhados por eles nas calçadas: o mesmo expediente idiota, sujo e nada ecológico empregado pelos adversários de pior pedigree.

Foto tirada por mim às 14h de hoje em frente à PUC de Perdizes, em São Paulo

Dois pesos...

O Estado está sob censura há 429 dias. A informação está lá, impressa em um quadradinho encaixado num canto de página do primeiro caderno. Os diretores do jornal ainda não se cansaram de publicar, diariamente, o cálculo atualizado do tempo da censura. A estratégia pode ser justificável em tempos paranóicos como os nossos, quando as bravatas do presidente (nos estertores de seu segundo mandato) provocam arrepios nos zeladores da democracia. O que espanta é descobrir que os mesmos jornalões que garimpam indícios autoritários nos discursos de ministros - e se esforçam em divulgar ilações sobre um eventual controle da mídia - mostram as garras na hora de impedir a liberdade de imprensa daqueles que os vigiam e combatem. Censura é coisa boa quando serve a nossos propósitos, parece reconhecer a direção da Folha de S. Paulo ao interromper, com amparo judicial por meio de antecipação de tutela, a veiculação do site Falha deS. Paulo, sátira inaugurada em meados de setembro pelos irmãos Lino Ito Bocchini (jornalista da revista Trip) e Mario Ito Bocchini.
A alegação, evidentemente, foi de uso da marca. Tal expediente permite ao jornalão prescindir de maiores discussões, apelações ou análise do mérito. Logomarcas e tipologias são protegidas por lei, e não se fala mais nisso. Toda sátira, entretanto, pressupõe utilizar o objeto principal como plataforma para digressões e criações, de forma espirituosa ou ácida, a depender do escopo da crítica pretendida. Designers de camisetas são craques nisso, acostumados a transformar o logo da Puma em apologia ao cigarro ou a adicionar as palavras "duma égua" após o logo da Fila. Nascidos da fusão editorial dos irreverentes Planeta Diário e Casseta Popular, nos anos 1980, os humoristas do Casseta & Planeta não estariam aí até hoje não fosse a vasta habilidade em produzir paródias.

Um jornal como a Folha poderia ter se abstido de comprar essa briga. Preferiu peitar o site, tal qual um Golias enfurecido. Os autores da Falha, sem combustível para arriscar o pagamento de multa diária de R$ 1 mil, retiraram o site do ar, deixando apenas um último registro de indignação. Poderão retomar o projeto, se assim quiserem, e manter grande parte do conteúdo produzido em suas duas semanas de vida, até o assassinato precoce no último dia 30, desde que retirem as referências visuais feitas ao jornal, precisamente o uso do logo. Material não vai faltar. No noticiário produzido pelo jornal, pipocam pensamentos a serem desconstruídos e manchetes a serem ironizadas. Nada como um processo eleitoral, acompanhado da erupção recente dos deliciosos #DilmaFactsByFolha (alçados aos trending topics do Twitter há cerca de um mês), para aguçar nosso olhar sobre o jornalismo que nos acostumamos a consumir. Eu prefiro acreditar que um outro jornalismo é possível.