quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Cabelo branco

"Prepare-se para ganhar muitos fios de cabelo branco".
Foi mais ou menos isto o que disse meu pai quando lhe falei pela primeira vez sobre meus planos de separação, ainda no primeiro semestre. Não disse apenas isto, é claro. Também me contou da dor, da angústia, da sensação de futuro estilhaçado que envolve episódios como esse (pelo menos as duas separações vividas por ele, hoje em seu terceiro casamento). Sugeriu que eu tivesse calma, o máximo que conseguisse, para costurar as decisões de forma serena, sem precipitação. Alertou-me para o sofrimento que viria, independentemente de ser minha a iniciativa: quem deixa, ele lembrou, convive não apenas com a tristeza do fim, mas também com um desconfortável sentimento de culpa e a persistente hipótese de ter cometido um equívoco.
Cheguei a sair de casa naquele mês. Passei uns dias viajando, mas voltei dali a duas semanas, disposto a insistir. Era dia dos namorados. E a difícil conversa de quatro horas mostrou que não caberia a mim encerrar um casamento que ainda não estivesse encerrado. O sal das lágrimas nos lábios unidos, embora trêmulos, indicavam um amor vestigial, aflito como náufrago a lutar contra as ondas, mas ainda vivo.
Menos de quatro meses depois, saí novamente de casa, agora para valer.
Não sei explicar o que me motivou a escrever sobre isso em meu último post do ano. Talvez o fato de não ter mencionado esse assunto antes, o que torna minha separação uma novidade para muitos. Talvez porque me separar tenha sido, entre todas as coisas, a mais representativa de 2009, sem dúvida o ano mais difícil da minha vida. Talvez porque, daqui a algumas horas, eu passarei meu primeiro reveillon sem a Aline após dez anos inaugurados em sua companhia. Namoramos ao longo de onze anos e, salvo engano, o único reveillon que estivemos separados foi o primeiro, de 1998 para 1999, quando ela estava em Londres e eu, na Ilha de Marajó (PA). Talvez, tenha escolhido escrever sobre isso porque o maior dos pedidos que farei ao romper 2010, com minha carapinha embranquecida, é para que sejamos muito felizes nessa nova etapa, com coragem para trilhar novos caminhos, coerência para transformar desejos em realizações e, por que não, humildade para voltarmos atrás e corrigirmos o manche se necessário.


Aline e eu nos casamos em março de 2004, após cinco anos e meio de namoro. Quem foi à cerimônia conta que estávamos radiantes, leves, sorrindo o tempo todo, sem nada da tensão que, muitas vezes, deixa os casais duros e apreensivos.
Sorríamos, e parecíamos fluir em consonância com a cerimônia. Minha irmazinha Amanda, com quatro anos, cismou com um violinista que ficou plantado à porta da capela e teve de ser rebocada por Helena, a outra daminha de honra, no trajeto até o altar. Padre Filinto, amigo de longa data, conquistou a plateia ao ler os dez mandamentos do casal, com coisas como "os dois nunca devem irritar-se ao mesmo tempo" e "se alguém deve ganhar a discussão, deixe que seja o outro". Chico, padrinho do noivo, leu o que o Apóstolo Paulo escreveu em carta enviada aos coríntios, possivelmente a maior verdade registrada por ele: sem o amor eu não seria nada. Entramos na festa ao som de "I say a little prayer" e trocamos a valsa por uma música de dançar coladinho (Aline certamente vai lembrar que música era), perfeita para inaugurar a pista. Passamos o resto da noite no Hilton e seguimos para Paraty na tarde seguinte.
Quando começamos a namorar, cinco anos antes, cursávamos o segundo ano da faculdade - eu, de jornalismo; ela, de arquitetura. Numa cidade (universitária) com milhares de alunos, fomos nos conhecer em um grupo de teatro que acabava de ser montado. Cartazes impressos em papel A4 foram espalhados pela USP com o intuito de convocar aspirantes a ator, com ou sem experiência, e lá fomos nós, estranhos um ao outro. Eram mais de trinta atores nos primeiros ensaios. Sobraram sete ou oito, incluindo o futuro casal. Fui reparar na Aline durante os ensaios da segunda peça que montamos, na qual ela vestia uma camisola preta e modelava os cílios com um curvex. Eu jamais tinha visto aquele instrumento e fiquei impressionado ao vê-la, no camarim, preparando-se para entrar em cena. Eu tinha 18 anos, era imberbe e me sentia um menino. Aos 21, ela era um mulherão.
Amei muito esse mulherão. Aline foi minha primeira mulher, na concepção civil e também na concepção sexual do termo, e uma enorme referência para que eu pudesse me tornar o homem que eu me tornei. Recentemente, ao contar da separação para uma pessoa, ouvi a seguinte pergunta: "Por que não deu certo?" Devo ter ficado quieto durante um minuto. Não tanto porque não tenho resposta, mas principalmente porque me pareceu haver algo de errado na questão. "Mas deu certo", foi o que respondi. Deu muito certo por dez anos, certamente os melhores dos trinta que vivi até hoje. O chato, nessa história, é saber (ou desconfiar) que os próximos dez seriam muito diferentes dos dez que se passaram. E se não fomos capazes de preservar a alegria, o fascínio, o encantamento e a paixão, espero saber preservar as melhores lembranças. Foi Drummond quem escreveu, no poema Memória, do livro Claro Enigma, de 1951:
As coisas tangíveis,
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
A propósito, ontem, ao me olhar no espelho depois do banho, notei dois cabelos brancos em meu peito. Eu já havia me acostumado à profusão de fios grisalhos na cabeça e até me conformara com as alvas pinceladas na barba. Mas, no peito? Já é demais. Alcancei uma pinça na gaveta, mirei bem o maior dos cabelos, aproximei a ferramenta com cuidado, agarrei o maldito... e desisti de puxar. Deixa os cabelos brancos aí. Se eles de fato significam algo além do galopar da idade e da subsequente redução na taxa de melanina, que fiquem aqui comigo, como tatuagens, a testemunhar os altos e baixos da minha própria história.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

É só teimar (ou de como a pré-estreia do filme do Lula virou palanque)

O Presidente da República assistiu pela primeira vez, no sábado (28 de novembro), à versão definitiva do filme Lula, o filho do Brasil, que entra em cartaz a partir de 1º de janeiro. Acompanhado pela primeira-dama Marisa Letícia (ao braço direito) e pela pré-candidata à presidência Dilma Rousseff (ao braço esquerdo), Luiz Inácio Lula da Silva foi a São Bernardo do Campo prestigiar a exibição, organizada pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC com apoio da prefeitura e de empresas como a rede de cursos profissionalizantes Microlins e a marca de cosméticos Embelleze. Posou para fotos, acenou para uma plateia de quase duas mil pessoas – metade dela formada por sindicalistas e ex-sindicalistas – e, numa rara inversão de papéis, cumpriu ele mesmo o beija-mãos oficial da noite, cumprimentando, um por um, os atores e produtores do longa-metragem.


Emoldurado por um séquito de ministros e parlamentares da base aliada, Lula emocionou-se diante das cenas que retratam a morte e o enterro de sua mãe, Eurídice Ferreira de Mello (a Dona Lindu), evitou a imprensa e, prestando-se à insólita função de anfitrião-em-exercício do evento, jogou por terra as tentativas pregressas, algo quixotescas, de se disfarçar o uso político da fita. Pelo menos ali, no Pavilhão Vera Cruz – um complexo, implementado nos galpões da antiga Companhia Cinematográfica Vera Cruz, que reunirá cursos de profissionalização em audiovisual e incubadora de empresas ligadas ao setor –, funcionários do Palácio do Planalto e integrantes do PT ditaram as regras e assumiram a tarefa de transformar em palanque o que deveria ter sido apenas uma pré-estreia.

O primeiro estranhamento surgiu na semana anterior, quando se verificou que o credenciamento de jornalistas para a cobertura da noite estava sendo feito exclusivamente pelo setor responsável do Palácio do Planalto. O filme, afinal, é uma iniciativa da produtora LC Barreto ou do Governo Federal? Como justificar o fato de funcionários lotados no Executivo Federal (e pagos pelo contribuinte) dedicarem parte de seu expediente às tarefas de receber pedidos de credenciamento, conferir dados, formatar planilhas e encaminhar crachás com a rubrica verde-amarela a um evento em São Bernardo do Campo promovido, oficialmente, por uma entidade de classe autônoma sob patrocínio da iniciativa privada? É praxe, no entanto, submeter à equipe do protocolo oficial a tarefa de controlar, por motivo de segurança, o fluxo e os nomes das pessoas presentes a todas as solenidades públicas contempladas com a visita de Lula, mesmo quando não é o Planalto que as promove. Estranho costume em uma democracia.

O segundo estranhamento, que apenas amplificou os efeitos do primeiro, foi notar que todos os convidados recebiam de uma hostess, à entrada do Pavilhão Vera Cruz, um pequeno broche amarelo, ilustrado com um perímetro estilizado do mapa do Brasil e as iniciais PR, de Presidência da República, em letras maiúsculas. Seu uso era obrigatório no interior do galpão. “Coloque essa identificação e fique à vontade”, ela disse, indicando a esteira de raio-X e a equipe responsável por revistar as bolsas e pastas dos espectadores. “Deve ser PR de 'pé rapado'”, brincou um sindicalista, fazendo troça da própria insignificância numa noite em que os holofotes estariam direcionados, como de hábito, ao filho do Brasil.


O terceiro estranhamento surgiu ao dar-se início aos discursos, pouco antes das 21h, mais de uma hora após o horário marcado para o início do filme. Quando se imaginou que os realizadores do longa agradeceriam a presença e desejariam a todos bom divertimento, foi o prefeito Luiz Marinho, petista e ex-ministro de Lula, quem subiu ao palco. É verdade que a prefeitura aparece nos banners como apoiadora do evento. Mas franquear a ele o microfone e a prerrogativa de abrir os trabalhos, horas depois de ter inaugurado um espaço municipal dedicado à promoção dos direitos das crianças – batizado estranhamente com o nome da mãe do presidente, Eurídice Ferreira de Mello – pode ser interpretada como uma opção de caráter duvidoso. Fiel aliado, Marinho agradeceu a presença do cinebiografado e, na mesma frase, prontificou-se a cumprimentar a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, no que foi acompanhado por uma salva de palmas. Com a nítida sensação de missão cumprida, discorreu sobre os feitos da administração petista no campo da cultura, explicou o projeto que está sendo implementado no Pavilhão Vera Cruz e passou a palavra a Sérgio Nobre, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos.

Responsável pelo quarto estranhamento, Nobre forçou a amizade ao comparar o filme de Fábio Barreto a duas produções internacionais, as cinebiografias de Gandhi e Mandela, sugerindo a semelhança entre os líderes da Índia e da África do Sul com a do “menino de Garanhuns”. “O presidente já trouxe a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016 para o Brasil; quem sabe não traz um Oscar também”, completou a exaltação, provocando uma risada afetada e milimetricamente calculada no diretor do filme.

Foi ele, Fábio Barreto, o autor do quinto estranhamento. Em seu discurso, breve e preciso, dedicou o filme a Dona Lindu, mãe do presidente, e se prontificou a soluçar no momento exato, levando as mãos aos olhos e incorporando uma pausa providencial em sua fala, motivada pela súbita emoção que sentiu ao se lembrar de uma senhora do Nordeste que ele sequer conheceu. Por fim, o que não é de se estranhar, o produtor Luiz Carlos Barreto leu ao microfone um texto que teria preparado para ocasião, no qual afirma: “Esse não é um filme político. É a história da família Silva (...), sua coragem e superação”. Será?

Em tempo: O filme não é grande coisa em matéria de cinema e deve provocar, tanto nos admiradores quanto nos detratores de Lula, uma sensação de desperdício, de que ainda está para surgir um filme à altura do personagem. Sua estética é demasiadamente fragmentada, tornando-se muitas vezes uma sucessão mal ajambrada de episódios, costurada num ritmo acelerado que sofre com a ausência de clímax e com a melodia quase ininterrupta (e maçante) de violinos e violoncelos. Há equívocos históricos, como a cena que mostra os diretores do sindicato dormindo no chão na cela do Dops em 1980 (eles dormiam em camas de concreto com colchonetes) e passagens mal conduzidas (como a da transformação do Lula alienado no Lula engajado). “Gostei do filme, mas algumas coisas estão mal contadas ali”, disse Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos na virada dos anos 1980 para os anos 1990 e atual deputado federal pelo PT. “O momento em que o Lula chora ao colocar o cargo à disposição não aconteceu na igreja logo após a greve de 1979, mas em uma assembleia no sindicato, depois de Lula passar quase um ano sendo chamado de traidor”, afirma ele, jovem metalúrgico na ocasião, citando uma cena do filme.