sexta-feira, 2 de março de 2012

O MMC dos poetas


Vale tudo no octógono da palavra, onde os golpes têm métrica e vence o atleta com a língua mais afiada


Reportagem publicada na edição 47 (março) de Época SÃO PAULO. As fotos são de autoria de Manu Costa e estão no blog do ZAP! (zapslam.blogspot.com)

É dia de ZAP!, ou Zona Autônoma da Palavra, o primeiro (e único) campeonato de poesia falada de São Paulo. Criada nos Estados Unidos, onde é conhecida como Slam, a modalidade consiste em recitar versos e submetê-los à avaliação de um júri, formado na hora, com voluntários da plateia. Cada competidor precisa ter pelo menos três poemas próprios, de modo a disputar as três etapas da prova, e a leitura de cada um não pode ultrapassar três minutos. As disputas acontecem uma vez por mês. A cada luta, o melhor poeta é classificado para a grande final, em dezembro, valendo o título de campeão do ano. A abertura da temporada 2012 aconteceu no Sesc Santo Amaro, em 25 de janeiro.



Uma garota de patins circula de tranças e viseira. Maquiada e sorridente, a jovem com vocação de cheerleader carrega uma prancheta. Seu codinome é Naga Yuka, e ela não está aqui para exibir a contagem dos rounds nos intervalos, mas para colher inscrições. Em minutos, há 11 inscritos. Eles têm menos músculos que os lutadores do Ultimate Fighting Championship (UFC), o maior campeonato de combates físicos da atualidade. Mas suas línguas são bem afiadas. Poetas bissextos, compositores de chuveiro e escritores em formação entram na peneira. Seguindo a ordem do sorteio, sobem à arena para declinar seus versos. Na primeira etapa, a última desafiante é Ana Roxo. Fã do argentino Jorge Luis Borges e da paulista Hilda Hilst, a atriz de 35 anos é um furacão no palco:


Eu como chocolate escondida (de mim) eu como você escondida dos outros eu não te como mais eu acredito em Deus eu já vi o capeta (ele piscou pra mim)

O octógono é um tablado retangular com um microfone no meio. Não há cenário nem figurino.“O foco deve estar no texto e na expressão do autor”, diz Roberta Estrela D’Alva, ao mesmo tempo juíza e apresentadora. “Chegamos a receber 20 inscritos. Aparece de tudo: estudantes, senhoras, MCs, gente que aborda temas sociais ou fala de amor.”Ao fim de cada poema, cinco jurados erguem seus cartazes com as notas. Um deles dá nota 10 todas as vezes. “Toda criação é 10”, diz, pouco criativo. A mais alta e a mais baixa não são computadas na soma competitiva.
Enquanto a lousa que serve de placar volta a tinir, alva e limpa, cinco nomes retornam ao sorteio. Cada um a seu tempo, recitam o segundo poema. Na fala afiada desses atletas, sobra porrada para a especulação imobiliária, socos para a PM que atuou em Pinheirinho, pontapés para um mercado cultural que, dizem, exclui a periferia. Ana Roxo volta mais calma para a segunda etapa, falando a um amante que ainda não conheceu. Outro participante, craque nas rimas, Calixto recita um rap. Surge Emerson Alcalde, um ator de 29 anos com dreads e cavanhaque, para falar de flores:


Tua semente foi plantada em terra preta por mãos sofridas
E não no algodão artificial do cientista
(...)
Você tem preço só pro vendedor de flor
Pros amantes, tem valor.

O duelo segue. Organizadora de um sarau na Cidade Ademar, Lídis sobe com um livrinho e lê seus versos, já publicados. Quem fecha a segunda bateria é Serginho Poeta, de 41 anos:


Meia-noite no gueto
Tem um preto parado na esquina
– Será ladrão ou vendedor de cocaína?
(...)
Sou poeta de rua
Agora, espero que me deixem
Continuar olhando o céu
Pois negro já nasce poeta
Mas também já nasceu réu.

Emerson Alcalde, Ana Roxo e Serginho Poeta passam à última fase. O clima esquenta. Ana quebra o gelo e
avança com um cruzado de direita:
No final dos meus textos, você sempre vai embora
Mas aí, no texto, eu minto
Dizendo que te dei mais um beijo
E disse tchau com muita dignidade.

Alcalde devolve:

A multidão parou pra perguntar o que ela tinha
Oque ela tinha?
(...)
A senhora morreu deitada no chão
Abraçada com a única coisa que tinha:
suas latinhas.

Veteranos no ZAP, Ana e Alcalde ficam em segundo e terceiro. Serginho sagra-se campeão, logo na luta de estreia. Sorte? Melhor: poesia bem feita:

Amanhã é dia de visita
Meu filho, a criança mais bonita
Virá me conhecer
Vou rezar até o amanhecer
Para que a vida também não o torne bandido
Para que seja, talvez, como minha mãe sonhou
Um profissional bem-sucedido.

Coordenador da biblioteca de uma fundação no Jardim São Luís, Serginho começou a recitar há dez anos, no Samba da Vela. Para o ZAP, levou seus versos mais engajados. “A temática da exclusão é, hoje, o que as pessoas mais gostam de ouvir”, diz, bom de briga.