quarta-feira, 29 de julho de 2009

Liberdade - essa palavra (parte 2)

Olha lá a palavra liberdade, me pegando mais uma vez de surpresa numa página de jornal. Outro livro, outro autor, outro assunto, e a mesma velha liberdade a nos servir de farol. Esse eu ainda não li. Traz como título A imprensa e o dever da liberdade e foi escrito por meu amigo Eugênio Bucci. Acaba de ser lançado pela Contexto, sem coquetel nem nada, como exige a rotina low-profile de um jornalista e professor sempre ocupado. Justamente por essa ausência de rituais e burburinhos, fui pego de surpresa pela crítica publicada no Estadão de domingo pelo Janine Ribeiro. Nem sabia que o livro estava pronto e lá vinha o cientista político a discorrer sobre a obra, a apontar seus trunfos e a acusar sua obrigatoriedade. Pela crítica lida, pelo título do volume e pelo porte do autor, A imprensa e o dever da liberdade entra desde já para a categoria dos livros que ainda não li, mas já gostei.


Curiosa a liberdade de imprensa. Vive prensada entre duas liberdades distintas, e tão íntimas: a liberdade do jornalista (e do jornal), de apresentar notícias e fatos sem a censura das autoridades da política e dos barões da economia, e a liberdade do leitor, de ser informado de maneira isenta e aprofundada. Uma não perdura sem que a outra exista. E vice-versa. Ad infinitum. Mas, jornalistas que somos (Bucci, eu e a maioria dos raros leitores deste blog), temos de estar atentos permanentemente ao que o título chama de "dever de liberdade". Faz-se aqui uma inversão notável. Não se trata de "direito à liberdade", mas de dever. E esse dever não pode jamais deixar de ser um hábito, uma preocupação e uma intenção. Tampouco pode baixar os olhos perante o mercado anunciante ou a negociação de uma dívida com o BNDES - por mais ingênuo e romântico que um comentário desses possa parecer diante do Ibope e da tirania da tiragem.

É essa a seara sobre a qual Eugênio Bucci se debruça, retornando mais uma vez ao tema da ética (que lhe é tão caro). "Os jornalistas e os órgãos de imprensa não têm o direito de não ser livres, não têm o direito de não demarcar a sua independência a cada pergunta que fazem, a cada passo que dão, a cada palavra que escrevem", resume o autor logo no primeiro capítulo. "Cultivar, exercer e tornar cada vez mais explícita a liberdade com que exercem o seu ofício é o primeiro e o mais alto dever dos profissionais da imprensa."

O jornalista "deve" ser livre ao redigir uma reportagem sobre economia ou política, o que torna no mínimo estranho descobrir que o profissional fez a entrevista durante um almoço... pago pelo entrevistado. O jornalista "deve" ser livre ao tecer a crítica de um filme, o que torna no mínimo estranho descobrir que o profissional viajou aos Estados Unidos para cobrir a pré-estréia... a convite do estúdio ou da produtora. O jornalista "deve" ser livre para entender que o seu patrão é o leitor, e não o anunciante. E para que possa agir segundo esse princípio. O que está em jogo, muito além da qualidade da informação ou da alegria de publicar um furo (ou uma exclusiva), é a credibilidade da imprensa enquanto instituição. Todos nós sabemos o que acontece quando uma instituição se torna refém do fisiologismo e de práticas não-pautadas pela ética. E quando um servidor esquece quem é, de fato, seu patrão.

Vou buscar o meu exemplar ainda nesta semana.

domingo, 26 de julho de 2009

Liberdade - essa palavra

Acabei de ler Diário de Fernando, livro mais recente de Frei Betto, lançado há um mês pela Rocco. Às vésperas do aniversário de 30 anos da lei da anistia, assinada em 28 de agosto de 1979, a obra desponta como mais um testemunho pungente do cotidiano de torturas e privações a que foi submetida grande parte dos que ousaram combater, com palavras ou armas, o chumbo grosso da ditadura militar. E o faz ao trazer a público, com acabamento literário, as anotações improvisadas no cárcere por Fernando de Brito, preso político entre 1969 e 1973.


Fernando é frade dominicano, a mesma congregação religiosa de Betto, e esteve preso com ele, quase sempre na mesma cela - no Deops, no presídio Tiradentes, no Carandiru e na penitenciária de Presidente Venceslau. Com tino de historiador, teve a coragem de registrar o cotidiano da prisão em letras miúdas sobre papel de seda e, correndo o risco de ser descoberto pelos carcereiros, garantiu a sobrevivência de seus relato escondendo cada página, devidamente enrolada, no tubo opaco de uma caneta Bic. A cada semana, aproveitava a visita de algum colega do convento para trocar a caneta subversiva por uma novinha, vazia, sedenta de informações e histórias. Quase quarenta anos depois da prisão, Frei Betto reuniu seu legado e transcreveu as anotações, dando forma de livro ao diário de Fernando. Uma das páginas originais pode ser vista na bela foto abaixo, de Marcelo Sant'Anna, publicada em matéria do jornal Estado de Minas.


Frei Fernando tem 72 anos e mora há 13 anos em Conde, na Bahia, onde mantém atividades missionárias junto à população mais pobre. Por muito tempo, foi obrigado a conviver com a dor de ter, com todos os atenuantes da confissão sob tortura, revelado informações que podem ter contribuído para o cerco policial que resultou no assassinato de Carlos Marighella, líder máximo da luta armada paulistana, em novembro de 1969. O episódio está narrado em Batismo de Sangue, o livro de Frei Betto que virou filme de Helvécio Ratton. Fernando foi preso no dia primeiro daquele mês, um domingo, juntamente com o também dominicano Frei Ivo Lesbaupin, ao descer de um ônibus no Rio de Janeiro. Haviam chegado naquela manhã. Ivo pretendia visitar sua família e Fernando, editor na Livraria Duas Cidades, teria uma reunião com o editor da Vozes. "Por que estão nos prendendo?", quis saber. "Uma senhora foi assaltada no ônibus e apontou vocês como ladrões", foi a resposta.

Não era nada disso. E eles sabiam. Fernando e Ivo, bem como Frei Betto e outros dominicanos, compunham uma rede de apoio responsável por esconder guerrilheiros e ajudá-los a sair do país quando a coisa ficava feia demais pro lado da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização liderada por Marighella. Conduzidos até o Cenimar, os frades foram interrogados por Sérgio Paranhos Fleury. Pau-de-arara, pancadaria, intimidação. "Vocês são base fixa do Marighella. Como é que o Marighella entra em contato com vocês?", o algoz de olhos vítricos e cara inchada quis saber. Com a corrente elétrica a enrijecer-lhe os músculos, Fernando contou que era Marighella quem ligava para ele, no telefone da livraria em que trabalhava. Trazidos de volta a São Paulo no dia seguinte, os frades foram obrigados a esperar o próximo contato e confirmar o próximo encontro, como se nada houvesse. Não deu outra: o contato foi feito e o ponto, marcado para a terça-feira, dia 4, na Alameda Casa Branca. Carlos Marighella foi executado a tiros. Anos mais tarde, Frei Tito, outro dominicano preso na ocasião, exilado em Paris, cometeria suicídio por não aguentar os fantasmas da tortura e da prisão.

Em Diário de Fernando, o que se lê é a crônica diária (ou semanal) daquilo que de mais importante aconteceu com ele e com seus pares nos tempos de prisão: a porrada, os sonhos, as visitas dos familiares e dos advogados, o apoio incondicional de D. Paulo Evaristo Arns, os trinta e poucos dias de greve de fome, o exercício da fé e do caráter, a chegada de novos presos, a saída de outros (alguns para nunca mais...). Nele, os autores (podemos dizer que são dois) também discorrem sobre a situação dos presos comuns, as brigas de faca, os crimes passionais cometidos entre bandidos amasiados na carência amorosa de quem passa cinco ou quinze anos sem ver mulher. Compõem, ainda, um retrato vivo e urgente de esperança e ode à liberdade. A mesma liberdade à qual Marighella, guerrilheiro-poeta, havia dedicado um soneto quando preso sob a ditadura de Vargas, em 1939, do qual destaco o último terceto:

E que eu por ti, se torturado for,
possa feliz, indiferente à dor,
morrer sorrindo a murmurar teu nome.


A mesma liberdade que nos parece parca, mesmo quando ampla. A mesma liberdade pela qual ansiamos, mesmo quando livres. A mesma liberdade que desponta dos versos tão conhecidos de Cecília Meireles, dos quais roubei o título deste post:

Liberdade - essa palavra
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!

terça-feira, 21 de julho de 2009

Gay Talese não conhece o Google

Não fui à Flip. Não assisti à palestra realizada no Masp. Tampouco estive entre os jornalistas que lograram receber Gay Talese em sua própria editora. Por isso encarei com grata satisfação o fato de vê-lo adentrar minha casa na noite de ontem, com lencinho no bolso e tudo, através da tela da tevê. Gay Talese esteve no centro do Roda Viva. Fosse uma mesa de bar, é provável que a conversa se estendesse até a madrugada, e que o discurso ganhasse ainda mais brilho, e que a pompa de autor festejado cedesse espaço ao despojamento do repórter curioso (que Talese ainda é, e não consegue disfarçar, por mais esforço que faça). Mas como eu não tenho certeza se esse senhor elegante frequenta botecos - nem mesmo se bebe cerveja e come pastéis - dei-me por contente ao ouvi-lo no programa.


Foi Caio Túlio Costa, de quem lembro ter devorado em dois dias o belo e contundente "Cale-se" (A Girafa, 2003) - livro-reportagem sobre a guerra civil instalada em São Paulo pela repressão de 1973 -, a ótima pergunta: "Gay Talese, se uma editora o procurasse com a proposta de escrever um perfil e lhe desse duas opções, qual você escolheria: um perfil do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, ou um perfil dos jovens que fundaram o Google, Larry Page e Sergey Brin?" "Do Ahmadinejad, sem nenhuma dúvida", o entrevistado respondeu. "Google, eu nem sei o que é. Minha mulher diz que eu não entendo dessas coisas porque sou preguiçoso. Eu não acho que seja isso. Eu apenas prefiro fazer minhas pesquisas por minha conta, e não por meio de um mecanismo no computador."
Gay Talese não conhece o Google. Mas o Google conhece "gay talese". Uma busca por essas duas palavras, devidamente abraçadas por aspas, retorna 336 mil registros. Talvez Larry Page e Sergey Brin não conheçam Talese - um desvio de conduta facilmente corrigido com uma ou duas "googladas". Mas nem isso tira do autor de "A mulher do próximo" e "Fama e anonimato" a culpa por ser tão severo diante de um site que lhe é tão receptivo. Gay Talese, na verdade, não precisa do Google. Seu negócio é ir às ruas, andar, estar com as pessoas, observar, conhecer suas histórias, desvendar seus mistérios. Uma vez, meteu na cabeça o desejo de entrevistar uma jogadora de futebol chinesa que havia perdido um pênalty na final do campeonato, decretando a derrota do time e cobrindo-se de vergonha. Para isso, teria de pegar um avião, cruzar o planeta, se hospedar durante algum tempo no país mais populoso do mundo, e certamente gastaria na brincadeira uma pequena fortuna (pequena é um lugar comum inserido aqui apenas para dar ritmo à frase). Tudo isso para ter uma conversa que, talvez, não rendesse matéria alguma. Foi exatamente o que ele fez, sem usar o Google sequer para escolher e reservar o hotel. O perfil, quando concluído, acabou não sendo publicado em nenhum jornal ou revista, permanecendo na gaveta até ser incluído no livro "Vida de escritor" (Companhia das Letras), seu mais recente lançamento.
É esse o jornalismo que interessa a Gay Talese. Não o jornalismo do furo, o jornalismo feito às pressas com um olho na audiência e outro na tiragem. Também não lhe interessa o jornalismo dos políticos, dos poderosos, das celebridades. É possível que ele nem conseguisse fazer um jornalismo que não fosse o das ruas, garimpado no cotidiano, fungindo das fontes óbvias que todos os demais jornalistas costumam procurar. "Saiam de trás de seus lap tops", ele pede. "O lap top é o maior inimigo da boa reportagem".
Hoje, soa um tanto ridículo ouvir aquele senhor de cabelos brancos desmerecer a tecnologia, ainda mais quando se sabe que o lap top, por exemplo, é uma ferramenta indispensável à boa reportagem, exatamente pelo motivo de ser portátil e poder acompanhar o repórter em suas andanças e peregrinações. Também os sistemas de busca, verificada a idoneidade da fonte consultada, permite ao repórter perder menos tempo com a burocracia e com o universo dos números para se acercar daquilo que realmente importa para a boa história, seja ela ficcional ou jornalística: os personagens, a trama, o ambiente. A mulher de Gay Talese concorda comigo. E, após 50 anos de casamento, serve de contraponto para a teimosia do gênio. A caminho do estúdio para gravar o programa, ele conta, sua mulher lembrou que era aniversário de sua filha, em Nova York. Se dependesse apenas dele, o casal esperaria o programa acabar para voltar ao hotel e, só então, dali a quatro horas, fazer um telefonema internacional ou, em última hipótese, enviar um telegrama. Sua mulher, exata e precisa em sua atitude, sacou da bolsa um Blackberry e enviou um torpedo para a filha ali mesmo, de dentro do táxi: parabéns transnacional. Eu, cá entre nós, prefiro ter à mão o lap top e o Google. Sem abdicar, evidentemente, da referência inevitável de Gay Talese.
Não fui à Flip. Não assisti à palestra realizada no Masp. Mas pude aprender mais um pouco com as histórias contadas por Gay Talese no Roda Viva de ontem. Para ser honesto, não o teria feito se minha querida amiga Nathalia não me avisasse da entrevista, enviando ao meu celular um torpedo casual, um prosaico sms. Definitivamente, Gay Talese não sabe o que está perdendo.

domingo, 19 de julho de 2009

Uma felicidade irresistível e fugidia

Contribuição de Gabriel García Márquez ao Tudo cabe:
"Mas o poder - como o amor - tem dois gumes: exercemos e padecemos. Ao mesmo tempo que gera um estado de levitação pura, gera também seu avesso: a busca de uma felicidade irresistível e fugidia, só comparável à busca de um amor idealizado, que se anseia mas se teme, se persegue mas não se alcança. Diana sofria isso com uma voracidade insaciável de saber tudo, de estar a par de tudo, de descobrir o por quê e o como das coisas e a razão de sua vida. Alguns que conviveram com ela e a amaram de perto perceberam isso nas incertezas de seu coração, e pensam que muito poucas vezes ela foi feliz. Não é possível saber - sem ter perguntado a ela - qual dos gumes do poder lhe causou as piores feridas." (Notícias de um Sequestro)

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Cada país tem o Duque que merece

Dia desses ouvi alguém comentar sobre o desgaste da fórmula de humor praticada há tanto tempo pelo Casseta & Planeta. Anos atrás, diversos amigos jornalistas faziam questão de assistir ao programa toda semana. E chegavam à redação no dia seguinte comentando as melhores piadas da noite, as mais lapidares ironias. Esse fascínio acabou, não apenas em razão da incapacidade do grupo de se reciclar, mas também em decorrência de certo sucateamento a que o programa parece ter sido condenado após sucessivas reformulações propostas pela emissora e, é claro, a perda de seu líder mais conhecido. Outro motivo, no entanto, parece-me especialmente razoável para justificar a derrocada da sátira política como espetáculo humorístico.
Refiro-me ao fato de o próprio universo político ter se transformado em freak show, enquanto as instituições públicas convertem-se, paulatinamente, em um picadeiro muito mais fértil do que poderiam imaginar os mais criativos saltimbancos.
Não é à toa que o Congresso seja chamado frequentemente de "circo", inclusive pelos micos amestrados que perambulam por ali. E, a fim de promover a renovação sistemática do público e evitar-se a mesmice, a cada temporada surge um novo astro: um exímio atirados de facas, um destemido comedor de espadas, uma incauta mulher barbada recém-saída da Bulgária.
Houve a temporada do trem da alegria, a marcha dos anões, a hora da dancinha... Teve parlamentar de olho roxo, senador-crooner cantando folk em plenária, morte e vida severina na presidência da Câmara... Agora é a vez de um duque chamar para si os holofotes. Um duque recém-chegado sabe-se lá de onde para presidir o Conselho de Ética do Senado, uma espécie de clube do bolinha responsável por escolher os ingredientes, sovar a massa, abrir a redonda e servir a fumegante pizza do Sarney.


Paulo Duque (PMDB-RJ) chegou à Casa como segundo suplente do hoje governador fluminense Sérgio Cabral. Não recebeu votos, não fez promessas de campanha, age como se não tivesse contas a prestar com o eleitorado (até por não ter um). Assumiu o cargo indicado por Renan Calheiros, mais um cacique do mesmo partido de Duque e, é claro, Sarney. Já em suas primeiras declarações públicas, desacreditou as denúncias feitas contra o correligionário, disse que os atos secretos eram uma bobagem e esculhambou a opinião pública. "A opinião pública é muito volúvel", ele disse. "Não temo ser cobrado por nada. Quem faz a opinião pública são os jornais, tanto que eles estão acabando". Sobre a contratação de parentes, foi igualmente blasé: "Nomeações políticas sempre existiram, desde que o Brasil é República".
Tudo indica, pelo programa vendido na porta do teatro, que o final da peça é aquela que todos imaginam. Quando um servidor assume um cargo no qual deveria atuar com isonomia, como um juíz, e desanda a emitir opiniões pessoais logo de saída, acontece o que na Fórmula 1 convencionou-se chamar de "queimar a largada". É pena que, debaixo da tenda e acima da serragem, malabaristas e equilibristas prefiram fingir que nada veem. Pior para a nação, melhor para a farsa. Deixa o duque atuar à sua maneira!

terça-feira, 14 de julho de 2009

Pense no Haiti, reze pelo Haiti

(com fotos de Victor Ferreira)

Victor acordou chorando, assustado com as imagens que pipocavam em seu sonho. Sonho sinestésico aquele, no qual o timbre pútrido de uma xepa mal ajambrada misturava-se ao paladar turvo de crianças e jovens a caminhar a esmo pelas ruas de Porto Príncipe. Na mais incômoda das imagens, uma criança agachava-se junto ao meio-fio, amassava entre os dedos um montinho de areia, untava aquela pasta com água suja e, após esperar alguns minutos até que secasse ao sol, jogava aquele biscoito improvisado boca adentro. Agora, a criança papa-terra esboçava um sorriso de satisfação, como se agradecesse a Deus pela cookie de barro de cada dia. Victor, ainda sonhando, chegou mais perto para desvendar aquele sorriso e reconheceu seu sobrinho. Pulou da cama num átimo, varrendo a cena de seus olhos, e celebrou o fato de estar novamente em São Paulo, limpo, seguro, e com a geladeira cheia.


Victor havia chegado na véspera de uma breve visita ao Haiti. Jovem repórter, daqueles que sabem agarrar o cavalo a galope e dispensam exageros de sela e estribo, Victor faturou um convite do Exército para conhecer Porto Príncipe e acompanhar in loco a troca do efetivo brasileiro aquartelado na cidade, hoje em torno de 5 mil pessoas segundo o jornalista. A cada seis meses, substituem-se todos os oficiais: uma sábia estratégia para se preservar a saúde mental e física daquela gente, obrigada a conviver sem intervalo com o cotidiano inóspito de uma nação sem expectativas.
Victor ficou apenas dois dias ali, após um périplo que envolveu pernoites no Rio e em Manaus, além de diversas escalas em cidades como Brasília e Caracas. Hospedou-se na base do Exército, com outros jornalistas, e pôde conversar com militares de diferentes patentes. À noite, driblou um convite oficial para confraternizar em um regabofe na casa do embaixador para se juntar a uma patrulha noturna, devidamente munido de colete e capacete. Acordou cedo para passar o dia inteiro em Cité Soleil, a "cidade do sol", maior favela do país. Visitou um orfanato, conversou com moradores da comunidade, percebeu o barril de pólvora que se estende entre as belas colinas habitadas pela elite e os tristes vales ocupados pelas massas, descobriu o que é desemprego crônico, assustou-se com os 15 dólares cobrados por um galão de água de 5 litros onde um salário mensal raramente extrapola 100 dólares e chegou à dura conclusão de que ainda é cedo para as tropas brasileiras abandonarem o comando da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), contrariando as reiteradas pressões nesse sentido.


Victor voltou cheio de sonhos, os bons e os ruins, e de ideias para escrever sobre o Haiti. Seria uma apropriação indébita da minha parte alongar-me nesses relatos e tirar dele a prerrogativa de contar tudo em primeira mão. Antes de partir, havia quem não entendesse sua estranha vontade de ir para um lugar tão feio, tão pobre, tão vazio de atrativos. Bom repórter que é, Victor cruzou uma das fronteiras mais belas que ele podia ter encontrado na lista de destinos de qualquer companhia aérea e carimbou mais uma vez seu passaporte no admirável mundo do compromisso social. Aos 20 anos, renovou sua capacidade de se indignar (e se sensibilizar) diante das situações de injustiça e de afronta aos direitos humanos, o que continua sendo uma qualidade intrínseca ao exercício da nossa profissão.

sábado, 11 de julho de 2009

Dia de ver o Rei

Pronto. Já sei qual vai ser meu programinha de sábado à noite: assistir (pela TV) ao show do Roberto Carlos no Maracanã. Fui convencido. Primeiro, pelo Jornal Nacional de ontem, no qual o rei tropeçou, ao vivo, na letra de uma das músicas previstas no setlist de hoje (e que, portanto, deveria estar na ponta da língua). Será que ele vai de playback? Depois pelo semblante embasbacado de William Bonner ao ouvir que o artista, 50 anos depois, ainda sente frio na barriga ao subir num palco. Finalmente, um Globo Repórter inteiro dedicado ao mito, no qual se apurou, por exemplo, o empurrãozinho dado por Tim Maia para que Roberto passasse a flertar com o rock n' roll displicente de Elvis Presley e seguisse no caminho que o levaria à Jovem Guarda. "Foi o Tim que me ensinou a fazer o chacundum no violão, porque eu tocava, mas fazia a batida errada", confessou o galã sexagenário, não exatamente com essas palavras, jogando um sorrisinho de festa de arromba para o broto que o entrevistava. Uma brasa.


É preciso fazer o check in e embarcar na onda do Rei como quem ingressa em um daqueles brinquedos geniais do Universal Studios. Não há outro caminho quando o artista é sua própria obra. Acontece com Madonna, aconteceu com Michael Jackson. Perpassa o universo dos grandes artistas, pop ou não, que ousaram se converter em instalações multimídias. De Ozzy Osbourne a Amy Winehouse, de Cauby Peixoto a Lanny Gordon, o que sobe ao palco não é somente um músico ou uma banda, mas uma constelação de conflitos, genialidades e significados. Resumindo, a coisa funciona mais ou menos assim: pare com essa mania de torcer o nariz ao jogo de cena do showbizz e permita-se curtir, desavergonhadamente, os exageros, os TOCs, a cafonice, a lenda. Ninguém completa 50 anos de carreira com tamanha opulência à toa - e a despeito dos erros do seu português ruim...

É provável que eu não consiga assistir ao show até o fim. Aquela insólita posição de crooner de big band adotada por sua majestade, a luz azulada do palco, as rosas sem espinhos lançadas à platéia, os gritinhos das fãs, tudo isso reveste com um brilho excessivo o que poderia ser apenas um feliz compilado de ótimas canções. Tudo depende, também, da lista de canções. Vai bater uma nostalgia, eu sei, uma saudade do tempo das matinês, de quando o claudicante cantor de Cachoeiro do Itapemirim amava loucamente a namoradinha de um amigo e flertava com garotas papo-firme (que eram mesmo avançadas e só dirigiam em disparada). É pena que o Rei tenha envelhecido junto com seu público, e trocado pouco a pouco a irreverência de antes pelo bolero-canastrão que domina a maior parte de suas apresentações. Mesmo assim, e malgradas as opiniões pessoais aqui expostas (que geralmente não servem para muita coisa), estou decidido a xeretar a coisa e conferir o que virá.

Ouvi quando era menino as primeiras canções de Roberto Carlos. Por volta dos meus nove anos, lembro-me de ter feito uma viagem de carro com meu pai, à Bahia, e de me deparar com uma caixinha de fitas expropriada recentemente das coisas de meu avô, pai do meu pai, falecido uns cinco anos antes. Uma das fitas era preenchida por grandes sucessos do Rei. Curti à beça os versinhos ingênuos de Lady Laura. Demorei a decifrar a malícia de Cavalgada: "vou cavalgar por toda a noite / por uma estrada colorida / usar meus beijos como açoite / e minha mão mais atrevida / vou me agarrar aos seus cabelos / pra não cair do seu galope / vou atender aos meus apelos / antes que o dia nos sufoque." Quis sair correndo ao me deparar com o despropósito de Solamente una vez, um horror, e confesso não ter dado nenhuma pelota para os "detalhes tão pequenos de nós dois".

Mas havia uma canção ali, a única que eu já conhecia, que me arrebatou completamente. Não pelo apuro harmônico ou pela força da melodia, mas por falar de amizade, de compromisso, e da possibilidade de se amadurecer sem arrancar toda a ingenuidade do coração. De alguma forma, lançou elementos que me ajudaram a forjar meu caráter. Chama-se "Amigo", e foi composta em parceria com Erasmo Carlos. Eu já a conhecia, também graças ao meu pai, penso eu, que surpreendentemente se deixara flagrar cantando os primeiros versos. Até hoje não sei dizer por quê. Fã de Chico Buarque e Elis Regina, Tom Jobim e Vinícius de Morais, papai nunca foi chegado nas coisas do Roberto e jamais teve um disco dele, apenas aquela coletânea não prevista que em pouco tempo voltaria a desaparecer. De qualquer modo, para mim aquela música funcionava como um amálgama na parceria entre pai e filho (mesmo que eu ainda nem soubesse o significado da palavra amálgama).

Eu, que mais tarde descobriria "Sua estupidez" e "Como dois e dois" num disco obrigatório de Gal, que decoraria "Quero que vá tudo pro inferno" e "História de um homem mau" para tirar onda no colégio, que aprenderia a gritar a palavra maconha entre os versos do refrão de "É proibido fumar", que me emocionaria com a esperança singela transmitida em "Debaixo dos caracóis dos seus cabelos", feita em homenagem a Caetano, aproveito para agradecer ao Rei por ter me presenteado, aos nove anos, com aquela canção. Ela ainda mora aqui por perto

Amigo

Você, meu amigo de fé, meu irmão camarada.
Amigo de tantos caminhos, de tantas jornadas.

Cabeça de homem, mas o coração de menino.
Aquele que está do meu lado em qualquer caminhada.

Me lembro de todas as lutas, meu bom companheiro.
Você tantas vezes provou que é um grande guerreiro.
O seu coração é uma casa de portas abertas.
Amigo, você é o mais certo nas horas incertas.

Às vezes, em certos momentos difíceis da vida,
Em que precisamos de alguém pra ajudar na saída,
A sua palavra de força, de fé e de carinho
Me dá a certeza de que eu nunca estive sozinho.

Você, meu amigo de fé, meu irmão camarada.
Sorriso e abraço festivo na minha chegada.
Você, que me diz as verdades com frases abertas,
Amigo, você é o mais certo nas horas incertas.

Não preciso nem dizer
Tudo isso que eu lhe digo,

Mas é muito bom saber
Que você é meu amigo.

Não preciso nem dizer
Tudo isso que eu lhe digo,
Mas é muito bom saber
Que eu tenho um grande amigo.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

A voz vibra e a mão escreve

Colaboração de Mario Vargas Llosa:
"Qual a origem dessa disposição precoce para inventar seres e histórias, que é o ponto de partida da vocação de escritor? Creio que a resposta é: rebeldia. Estou convencido de que quem se entrega à elucubração de vidas distintas daquela que vive na realidade demonstra dessa forma indireta sua rejeição e crítica à vida como ela é e ao mundo real, bem como seu desejo de substituí-los por outros, fabricados por sua imaginação e desejos. Por que dedicaria seu tempo a algo tão efêmero e quimérico - a criação de realidades fictícias - aquele que está intimamente satisfeito com a realidade real, com a vida que leva?"
(A frase está no livro "Cartas a um jovem escritor", que eu li uns anos atrás para ver se aprendia alguma coisa...)

O tal protagonismo social

Esperei o Entre Aspas para ouvir o que tinham a dizer sobre a Cracolândia o secretário de coordenação das subprefeituras, Andrea Matarazzo, e o urbanista Kazuo Nakano, do Instituto Pólis. O resultado era previsível: ninguém sabe a receita. Confesso ter uma firme predileção por situações indefinidas, vidas em processo, gente em construção. No final, somam-se temperos, reserva-se, reduz-se, acrescenta-se... e a refeição é sempre servida, para deleite ou aflição dos comensais.

Pensar sobre os problemas da cidade (ou do país) e imaginar abordagens possíveis funciona, para mim, como uma espécie de desafio de lógica, um reles jogo de estratégia que, ao fim e ao cabo, não servirá mesmo para nada. Mata o tempo. E instiga. Cansa um pouco, é verdade, por isso largo o osso com mais assiduidade do que o abocanho. E só me meto em outra aporrinhação semelhante dali a um mês. Acho justo.


No debate sobre a Cracolândia, um único ponto me chamou atenção por tensionar a linha entre os dois convidados. Matarazzo expunha sua indignação com o fato de, hoje, não se poder internar ninguém à força, nem em hospitais psiquiátricos nem em instituições voltadas para a reabilitação de dependentes químicos. Segundo ele, melhor seria se o poder público pudesse arrastar toda aquela gente - zumbis que claudicam com o peso do mundo pelos ermos da "Baixa Rio Branco" - e trancafiá-los até a santa medicina expedir o alvará de soltura. Matariam-se dois coelhos: o bairro estaria salvo, e salvas também estariam as pobres almas raptadas pelo crack.

O secretário, no entanto, quase teve um piripaque quando Nakano, irritantemente calmo, tentou explicar que as coisas não são bem assim, que não se pode tratar o bairro como uma "tábula rasa", como se fosse um deserto sem dono onde não ninguém mora, ninguém trabalha, ninguém vive, ninguém trafega. Não se pode implodir, acionando-se um botão, as habitações de baixa renda que lhe são prevalentes para converter toda a área em um grande condomínio residencial ou em torres corporativas de quarenta andares capazes de resgatar o centro, como ocorre nos melhores sonhos de Matarazzo, para o seio da elite paulistana. Também não se pode, penso eu, espantar os nóias a bala, liquidá-los como fariam os Esquadrões da Morte em tempos não muito remotos, ou varrer o problema para debaixo do tapete (neste caso, para a rua vizinha, o bairro vizinho, o medo vizinho).

Por que continua sendo tão difícil entender que a cidadania não é título de nobreza nem artigo supérfluo adquirido em três parcelas no cartão? Por que é tão difícil entender que o jovem do quarto-e-sala na Timbiras, a viúva locatária do conjugado na Aurora, o balconista da lojinha de eletrônicos da Santa Ifigênia e a estagiária de advocacia do escritório da Rio Branco são cidadãos com direitos a serem preservados (e defendidos!) da mesma forma que a Mônica Waldvogel, o Kazuo Nakano, o Andrea Matarazzo e, talvez para a surpresa deste, os próprios dependentes químicos que tanto o infernizam? A vida já foi mais fácil.