domingo, 26 de julho de 2009

Liberdade - essa palavra

Acabei de ler Diário de Fernando, livro mais recente de Frei Betto, lançado há um mês pela Rocco. Às vésperas do aniversário de 30 anos da lei da anistia, assinada em 28 de agosto de 1979, a obra desponta como mais um testemunho pungente do cotidiano de torturas e privações a que foi submetida grande parte dos que ousaram combater, com palavras ou armas, o chumbo grosso da ditadura militar. E o faz ao trazer a público, com acabamento literário, as anotações improvisadas no cárcere por Fernando de Brito, preso político entre 1969 e 1973.


Fernando é frade dominicano, a mesma congregação religiosa de Betto, e esteve preso com ele, quase sempre na mesma cela - no Deops, no presídio Tiradentes, no Carandiru e na penitenciária de Presidente Venceslau. Com tino de historiador, teve a coragem de registrar o cotidiano da prisão em letras miúdas sobre papel de seda e, correndo o risco de ser descoberto pelos carcereiros, garantiu a sobrevivência de seus relato escondendo cada página, devidamente enrolada, no tubo opaco de uma caneta Bic. A cada semana, aproveitava a visita de algum colega do convento para trocar a caneta subversiva por uma novinha, vazia, sedenta de informações e histórias. Quase quarenta anos depois da prisão, Frei Betto reuniu seu legado e transcreveu as anotações, dando forma de livro ao diário de Fernando. Uma das páginas originais pode ser vista na bela foto abaixo, de Marcelo Sant'Anna, publicada em matéria do jornal Estado de Minas.


Frei Fernando tem 72 anos e mora há 13 anos em Conde, na Bahia, onde mantém atividades missionárias junto à população mais pobre. Por muito tempo, foi obrigado a conviver com a dor de ter, com todos os atenuantes da confissão sob tortura, revelado informações que podem ter contribuído para o cerco policial que resultou no assassinato de Carlos Marighella, líder máximo da luta armada paulistana, em novembro de 1969. O episódio está narrado em Batismo de Sangue, o livro de Frei Betto que virou filme de Helvécio Ratton. Fernando foi preso no dia primeiro daquele mês, um domingo, juntamente com o também dominicano Frei Ivo Lesbaupin, ao descer de um ônibus no Rio de Janeiro. Haviam chegado naquela manhã. Ivo pretendia visitar sua família e Fernando, editor na Livraria Duas Cidades, teria uma reunião com o editor da Vozes. "Por que estão nos prendendo?", quis saber. "Uma senhora foi assaltada no ônibus e apontou vocês como ladrões", foi a resposta.

Não era nada disso. E eles sabiam. Fernando e Ivo, bem como Frei Betto e outros dominicanos, compunham uma rede de apoio responsável por esconder guerrilheiros e ajudá-los a sair do país quando a coisa ficava feia demais pro lado da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização liderada por Marighella. Conduzidos até o Cenimar, os frades foram interrogados por Sérgio Paranhos Fleury. Pau-de-arara, pancadaria, intimidação. "Vocês são base fixa do Marighella. Como é que o Marighella entra em contato com vocês?", o algoz de olhos vítricos e cara inchada quis saber. Com a corrente elétrica a enrijecer-lhe os músculos, Fernando contou que era Marighella quem ligava para ele, no telefone da livraria em que trabalhava. Trazidos de volta a São Paulo no dia seguinte, os frades foram obrigados a esperar o próximo contato e confirmar o próximo encontro, como se nada houvesse. Não deu outra: o contato foi feito e o ponto, marcado para a terça-feira, dia 4, na Alameda Casa Branca. Carlos Marighella foi executado a tiros. Anos mais tarde, Frei Tito, outro dominicano preso na ocasião, exilado em Paris, cometeria suicídio por não aguentar os fantasmas da tortura e da prisão.

Em Diário de Fernando, o que se lê é a crônica diária (ou semanal) daquilo que de mais importante aconteceu com ele e com seus pares nos tempos de prisão: a porrada, os sonhos, as visitas dos familiares e dos advogados, o apoio incondicional de D. Paulo Evaristo Arns, os trinta e poucos dias de greve de fome, o exercício da fé e do caráter, a chegada de novos presos, a saída de outros (alguns para nunca mais...). Nele, os autores (podemos dizer que são dois) também discorrem sobre a situação dos presos comuns, as brigas de faca, os crimes passionais cometidos entre bandidos amasiados na carência amorosa de quem passa cinco ou quinze anos sem ver mulher. Compõem, ainda, um retrato vivo e urgente de esperança e ode à liberdade. A mesma liberdade à qual Marighella, guerrilheiro-poeta, havia dedicado um soneto quando preso sob a ditadura de Vargas, em 1939, do qual destaco o último terceto:

E que eu por ti, se torturado for,
possa feliz, indiferente à dor,
morrer sorrindo a murmurar teu nome.


A mesma liberdade que nos parece parca, mesmo quando ampla. A mesma liberdade pela qual ansiamos, mesmo quando livres. A mesma liberdade que desponta dos versos tão conhecidos de Cecília Meireles, dos quais roubei o título deste post:

Liberdade - essa palavra
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!

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