terça-feira, 14 de julho de 2009

Pense no Haiti, reze pelo Haiti

(com fotos de Victor Ferreira)

Victor acordou chorando, assustado com as imagens que pipocavam em seu sonho. Sonho sinestésico aquele, no qual o timbre pútrido de uma xepa mal ajambrada misturava-se ao paladar turvo de crianças e jovens a caminhar a esmo pelas ruas de Porto Príncipe. Na mais incômoda das imagens, uma criança agachava-se junto ao meio-fio, amassava entre os dedos um montinho de areia, untava aquela pasta com água suja e, após esperar alguns minutos até que secasse ao sol, jogava aquele biscoito improvisado boca adentro. Agora, a criança papa-terra esboçava um sorriso de satisfação, como se agradecesse a Deus pela cookie de barro de cada dia. Victor, ainda sonhando, chegou mais perto para desvendar aquele sorriso e reconheceu seu sobrinho. Pulou da cama num átimo, varrendo a cena de seus olhos, e celebrou o fato de estar novamente em São Paulo, limpo, seguro, e com a geladeira cheia.


Victor havia chegado na véspera de uma breve visita ao Haiti. Jovem repórter, daqueles que sabem agarrar o cavalo a galope e dispensam exageros de sela e estribo, Victor faturou um convite do Exército para conhecer Porto Príncipe e acompanhar in loco a troca do efetivo brasileiro aquartelado na cidade, hoje em torno de 5 mil pessoas segundo o jornalista. A cada seis meses, substituem-se todos os oficiais: uma sábia estratégia para se preservar a saúde mental e física daquela gente, obrigada a conviver sem intervalo com o cotidiano inóspito de uma nação sem expectativas.
Victor ficou apenas dois dias ali, após um périplo que envolveu pernoites no Rio e em Manaus, além de diversas escalas em cidades como Brasília e Caracas. Hospedou-se na base do Exército, com outros jornalistas, e pôde conversar com militares de diferentes patentes. À noite, driblou um convite oficial para confraternizar em um regabofe na casa do embaixador para se juntar a uma patrulha noturna, devidamente munido de colete e capacete. Acordou cedo para passar o dia inteiro em Cité Soleil, a "cidade do sol", maior favela do país. Visitou um orfanato, conversou com moradores da comunidade, percebeu o barril de pólvora que se estende entre as belas colinas habitadas pela elite e os tristes vales ocupados pelas massas, descobriu o que é desemprego crônico, assustou-se com os 15 dólares cobrados por um galão de água de 5 litros onde um salário mensal raramente extrapola 100 dólares e chegou à dura conclusão de que ainda é cedo para as tropas brasileiras abandonarem o comando da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), contrariando as reiteradas pressões nesse sentido.


Victor voltou cheio de sonhos, os bons e os ruins, e de ideias para escrever sobre o Haiti. Seria uma apropriação indébita da minha parte alongar-me nesses relatos e tirar dele a prerrogativa de contar tudo em primeira mão. Antes de partir, havia quem não entendesse sua estranha vontade de ir para um lugar tão feio, tão pobre, tão vazio de atrativos. Bom repórter que é, Victor cruzou uma das fronteiras mais belas que ele podia ter encontrado na lista de destinos de qualquer companhia aérea e carimbou mais uma vez seu passaporte no admirável mundo do compromisso social. Aos 20 anos, renovou sua capacidade de se indignar (e se sensibilizar) diante das situações de injustiça e de afronta aos direitos humanos, o que continua sendo uma qualidade intrínseca ao exercício da nossa profissão.

8 comentários:

  1. Camilo, parabéns pelo blog. Um belo espaço para tratar dos redemunhos dessa vida.

    Vou visitá-lo regularmente.

    Grande abraço e viva o Haiti!

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  2. Lindo texto do Camis e muito orgulho do Vitão. Minha vó diria "esse vai longe". Beijos, Nath

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  3. Muito bom. Você não podia ter tido ideia melhor do que começar esse blog.
    E que presente poder conviver (e trabalhar) com jornalistas da sua cepa, Camilo, e da do Victor :D

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  4. não consigo comentar com meu nome

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  5. Já sou fã do blog! Um abraço, Cris.

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  6. Uma mix de sentimentos me devorou enquanto lia o texto.
    A tristeza é inevitável em ver a situação haitiana. Inevitável também é me deparar c o sofrimento vivido pelo Victor.
    Senti vergonha por muitas vez reclamar da boa comida simplesmente porque ela estava sem sal. Então uma sensação de alívio me confortou por viver bem, ter boa comida; saber que chegarei em casa e terei cookies de "verdade" para dar ao meu filho. Por ficar alivida, novamente senti vergonha e então uma tristeza tomou conta de mim!
    Parabéns pelo texto, Camilo!
    Victor, orgulho imenso de vc!!!

    Abraços
    Mary, irmã do Victor

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  7. Adorei seu texto. Vc escreve muito bem e fala sobre assuntos bacanas. Parabéns pelo texto sobre a cracolândia!

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  8. Vitorino,
    Aguardo um texto(quando conseguir de fato) nos contar sobre esta experiência. Sei que levará algum tempo(não muito),que conseguirá em "belas" palavras nos levar por momentos a pensar na humanidade esquecida por muitos.... Por ora parabéns ao Camilo!

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