terça-feira, 1 de dezembro de 2009

É só teimar (ou de como a pré-estreia do filme do Lula virou palanque)

O Presidente da República assistiu pela primeira vez, no sábado (28 de novembro), à versão definitiva do filme Lula, o filho do Brasil, que entra em cartaz a partir de 1º de janeiro. Acompanhado pela primeira-dama Marisa Letícia (ao braço direito) e pela pré-candidata à presidência Dilma Rousseff (ao braço esquerdo), Luiz Inácio Lula da Silva foi a São Bernardo do Campo prestigiar a exibição, organizada pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC com apoio da prefeitura e de empresas como a rede de cursos profissionalizantes Microlins e a marca de cosméticos Embelleze. Posou para fotos, acenou para uma plateia de quase duas mil pessoas – metade dela formada por sindicalistas e ex-sindicalistas – e, numa rara inversão de papéis, cumpriu ele mesmo o beija-mãos oficial da noite, cumprimentando, um por um, os atores e produtores do longa-metragem.


Emoldurado por um séquito de ministros e parlamentares da base aliada, Lula emocionou-se diante das cenas que retratam a morte e o enterro de sua mãe, Eurídice Ferreira de Mello (a Dona Lindu), evitou a imprensa e, prestando-se à insólita função de anfitrião-em-exercício do evento, jogou por terra as tentativas pregressas, algo quixotescas, de se disfarçar o uso político da fita. Pelo menos ali, no Pavilhão Vera Cruz – um complexo, implementado nos galpões da antiga Companhia Cinematográfica Vera Cruz, que reunirá cursos de profissionalização em audiovisual e incubadora de empresas ligadas ao setor –, funcionários do Palácio do Planalto e integrantes do PT ditaram as regras e assumiram a tarefa de transformar em palanque o que deveria ter sido apenas uma pré-estreia.

O primeiro estranhamento surgiu na semana anterior, quando se verificou que o credenciamento de jornalistas para a cobertura da noite estava sendo feito exclusivamente pelo setor responsável do Palácio do Planalto. O filme, afinal, é uma iniciativa da produtora LC Barreto ou do Governo Federal? Como justificar o fato de funcionários lotados no Executivo Federal (e pagos pelo contribuinte) dedicarem parte de seu expediente às tarefas de receber pedidos de credenciamento, conferir dados, formatar planilhas e encaminhar crachás com a rubrica verde-amarela a um evento em São Bernardo do Campo promovido, oficialmente, por uma entidade de classe autônoma sob patrocínio da iniciativa privada? É praxe, no entanto, submeter à equipe do protocolo oficial a tarefa de controlar, por motivo de segurança, o fluxo e os nomes das pessoas presentes a todas as solenidades públicas contempladas com a visita de Lula, mesmo quando não é o Planalto que as promove. Estranho costume em uma democracia.

O segundo estranhamento, que apenas amplificou os efeitos do primeiro, foi notar que todos os convidados recebiam de uma hostess, à entrada do Pavilhão Vera Cruz, um pequeno broche amarelo, ilustrado com um perímetro estilizado do mapa do Brasil e as iniciais PR, de Presidência da República, em letras maiúsculas. Seu uso era obrigatório no interior do galpão. “Coloque essa identificação e fique à vontade”, ela disse, indicando a esteira de raio-X e a equipe responsável por revistar as bolsas e pastas dos espectadores. “Deve ser PR de 'pé rapado'”, brincou um sindicalista, fazendo troça da própria insignificância numa noite em que os holofotes estariam direcionados, como de hábito, ao filho do Brasil.


O terceiro estranhamento surgiu ao dar-se início aos discursos, pouco antes das 21h, mais de uma hora após o horário marcado para o início do filme. Quando se imaginou que os realizadores do longa agradeceriam a presença e desejariam a todos bom divertimento, foi o prefeito Luiz Marinho, petista e ex-ministro de Lula, quem subiu ao palco. É verdade que a prefeitura aparece nos banners como apoiadora do evento. Mas franquear a ele o microfone e a prerrogativa de abrir os trabalhos, horas depois de ter inaugurado um espaço municipal dedicado à promoção dos direitos das crianças – batizado estranhamente com o nome da mãe do presidente, Eurídice Ferreira de Mello – pode ser interpretada como uma opção de caráter duvidoso. Fiel aliado, Marinho agradeceu a presença do cinebiografado e, na mesma frase, prontificou-se a cumprimentar a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, no que foi acompanhado por uma salva de palmas. Com a nítida sensação de missão cumprida, discorreu sobre os feitos da administração petista no campo da cultura, explicou o projeto que está sendo implementado no Pavilhão Vera Cruz e passou a palavra a Sérgio Nobre, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos.

Responsável pelo quarto estranhamento, Nobre forçou a amizade ao comparar o filme de Fábio Barreto a duas produções internacionais, as cinebiografias de Gandhi e Mandela, sugerindo a semelhança entre os líderes da Índia e da África do Sul com a do “menino de Garanhuns”. “O presidente já trouxe a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016 para o Brasil; quem sabe não traz um Oscar também”, completou a exaltação, provocando uma risada afetada e milimetricamente calculada no diretor do filme.

Foi ele, Fábio Barreto, o autor do quinto estranhamento. Em seu discurso, breve e preciso, dedicou o filme a Dona Lindu, mãe do presidente, e se prontificou a soluçar no momento exato, levando as mãos aos olhos e incorporando uma pausa providencial em sua fala, motivada pela súbita emoção que sentiu ao se lembrar de uma senhora do Nordeste que ele sequer conheceu. Por fim, o que não é de se estranhar, o produtor Luiz Carlos Barreto leu ao microfone um texto que teria preparado para ocasião, no qual afirma: “Esse não é um filme político. É a história da família Silva (...), sua coragem e superação”. Será?

Em tempo: O filme não é grande coisa em matéria de cinema e deve provocar, tanto nos admiradores quanto nos detratores de Lula, uma sensação de desperdício, de que ainda está para surgir um filme à altura do personagem. Sua estética é demasiadamente fragmentada, tornando-se muitas vezes uma sucessão mal ajambrada de episódios, costurada num ritmo acelerado que sofre com a ausência de clímax e com a melodia quase ininterrupta (e maçante) de violinos e violoncelos. Há equívocos históricos, como a cena que mostra os diretores do sindicato dormindo no chão na cela do Dops em 1980 (eles dormiam em camas de concreto com colchonetes) e passagens mal conduzidas (como a da transformação do Lula alienado no Lula engajado). “Gostei do filme, mas algumas coisas estão mal contadas ali”, disse Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos na virada dos anos 1980 para os anos 1990 e atual deputado federal pelo PT. “O momento em que o Lula chora ao colocar o cargo à disposição não aconteceu na igreja logo após a greve de 1979, mas em uma assembleia no sindicato, depois de Lula passar quase um ano sendo chamado de traidor”, afirma ele, jovem metalúrgico na ocasião, citando uma cena do filme.

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