domingo, 30 de agosto de 2009

A simbologia de uma placa

Sempre me incomodou saber que mais da metade dos projetos de lei aprovados no Brasil não passa de despachos para dar nome de fulano a uma rua, de cicrano a uma praça ou de beltrano a uma ponte. Principalmente quando me deparo com a proliferação de nomes que nada significam para mim (enquanto tanta gente digna de homenagem ainda não conseguiu batizar um beco sequer). Melhor seria se o Poder Legislativo proibisse nomes de gente nas vias públicas, tornando compulsória a adoção de nomes de flores, aves, paisagens, sentimentos. Eu, pelo menos, não acharia ruim avançar pela Avenida Begônia, virar à direita na Rua do Bosque, cruzar o Parque do Ipê, tomar a Rua Gavião à esquerda e, no final da ladeira, estacionar em frente à Praça Mantiqueira.
Na semana que passou, no entanto, pude ver o quanto a alteração no nome de uma rua pode ser essencial para a auto-estima de seus moradores e, acima de tudo, para que possamos celebrar, passo a passo, o iminente resgate da memória nacional e a tão sonhada conquista da cidadania. Na segunda-feira 23, em São Carlos (SP), foram inauguradas as primeiras placas com o nome de Dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife que, nos anos 70, firmou-se como um dos mais ativos arautos do combate à ditadura. Meses atrás, a Rua Dom Hélder Câmara tinha outro nome, de triste lembrança: Sérgio Paranhos Fleury.


Que justificativas poderia ter um vereador de São Carlos para propor (e conseguir a aprovação!) de uma lei cuja única finalidade fosse render homenagens ao mais cruel e sanguinário torturador que o Brasil já teve? Interpretado por Cássio Gabus Mendes no filme Batismo de Sangue, Fleury comandou o famoso Esquadrão da Morte - grupo paramilitar responsável por executar criminosos (e suspeitos) como se a pena de morte pudesse ser decretada à revelia da Justiça e do Direito - e era chefe do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) no período de máxima repressão, pós-68. Sob seu comando caíram os guerrilheiros Carlos Marighella, da Ação Libertadora Nacional, e Carlos Lamarca, da Vanguarda Popular Revolucionária, entre muitos outros.
Fleury não nasceu em São Carlos, mas em Niterói, no Rio de Janeiro, e nenhuma explicação me parece razoável para justificar o nome de rua a ele atribuído. Reportagem publicada em maio de 2008 na Revista Piauí mostrou a luta de alguns moradores envergonhados para, com a assessoria de estudantes da UFSCar, rebatizar os dois quarteirões malfalados. Ninguém gosta de morar numa rua com nome de palavrão. Para promover a troca, era preciso encaminhar à vereança municipal um abaixo-assinado com as rubricas de pelo menos 75% dos moradores. Isso foi feito. E coube ao vereador Lineu Navarro, do PT, apresentar o projeto sugerindo o nome do "bispo vermelho".
Dom Hélder é vinho onde Fleury foi vinagre. Fundador da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), foi quatro vezes indicado ao prêmio Nobel da Paz. Cronista e poeta inspirador, chegaria aos 100 anos em 2009 se não tivesse interrompido sua amorosa e comprometida missão uma década atrás. Em um de seus livros, intitulado O deserto é fértil, Dom Hélder deu uma pista para entendermos, ainda hoje, o valor de se buscar a justiça e a verdade, inclusive ao escolher os nomes das ruas:
Seria razoável pensar se adianta começar a clamar, de modo pacífico, mas decidido e firme, por justiça, enquanto a própria vida ou instituições a que pertença estejam comprometidas com a engrenagem das injustiças e da opressão. Na medida em que houver sinceridade em reconhecer a contradição provisória, na medida em que houver desejo sincero de encontrar, quanto antes - para si e para as instituições a que esteja preso - os caminhos da libertação, é ótimo ir-se comprometendo com a verdade e com a justiça.
Creio que São Carlos pode se orgulhar da rua recém-nascida. Falta à capital paulista - um dia, quem sabe... - encontrar nomes melhores para o "elevado" Costa e Silva, a Rodovia Castelo Branco, e, mais urgente do que todas, a ponte General Milton Tavares de Souza, assim batizada em homenagem a um torturador contumaz, que foi chefe do Centro de Informações do Exército (CIE) nos anos 70 e comandante do II Exército no anos 80.

Um comentário:

  1. Já pensei muito sobre esse assunto e me divido entre os dois lados!
    Acredito que é benéfico para muitos que os palavrões sejam devidamente retirados dos postes. Homenagear indivíduos com história e estórias vergonhosas é algo que realmente não tem cabimento.
    Ao mesmo tempo, porém, estamos apagando nossa própria história. O fato de termos em nossa São Paulo um Elevado Costa e Silva ou uma Rodovia Castelo Branco revela que, em algum momento, estivemos dispostos a aceitar esses emplacamentos. Que em dado momento, a homenagem foi feita.
    Talvez a maneira de impedir que essas aberrações aconteçam novamente seja justamente saber que, um dia, elas aconteceram.
    Guardadas as proporções, é um pouco o que Hannah Arendt fala sobre o holocausto. Não devemos apagar esse fato da nossa memória justamente para impedirmos que aconteça novamente.
    Abraços

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