domingo, 23 de agosto de 2009

Sacerdócio

"Medicina é sacerdócio", disse-me o oncologista Paulo Hoff na semana passada, repetindo um clichê suturado por professores de medicina desde o primeiro ano da graduação. Responsável pelo tratamento do vice-presidente José Alencar e diretor-clínico dos serviços de oncologia do Hospital Sírio-Libanês e do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, Hoff veste a batina às sete da manhã e só larga a sacristia às nove da noite. Recebe pelo menos dez pacientes por dia em seu confessionário e procura expiar pecados em forma de receitas. É adepto da "dieta do kibe" (substituição do almoço por um salgado) e só quebra os votos de ordem e celibato aos fins-de-semana, quando se permite o lazer descompromissado com a mulher e as três filhas, além de profanas partidas de basquete disputadas no Parque do Ibirapuera.
Paulo Hoff já havia me convencido de que medicina é sacerdócio quando, neste sábado, decidi tirar o atraso da semana e, com a Época e a Veja nas mãos, fui ler o que havia a meu alcance sobre Roger Abdelmassih.


Maior nome em reprodução assistida no Brasil, Roger Abdelmassih está preso em São Paulo, acusado de cometer mais de 50 crimes sexuais contra mais de 30 mulheres ao longo dos últimos quinze anos. Com um histórico de mais de 5 mil bebês "concebidos" em sua clínica (a marca foi comemorada com festa em 2006), Abdelmassih descartou há muito tempo a alcunha de sacerdote por não lhe parecer suficiente. Em sua potência, é ele a própria divindade. "Doutor-Vida" foi um dos apelidos auto-atribuídos pelo médico ao longo de sua carreira. Em 2004, quando tive a oportunidade de entrevistá-lo, lembro de ouvir brincadeiras sobre isso. Convidou-me para ver, ao microscópio, o momento em que um óvulo era fecundado e, sorrindo, disse qualquer coisa como "pronto, fez-se a vida". Também lembro de ter me assustado ao ouvir algo como "aqui a gente trabalha para corrigir deslizes cometidos por Deus". Minha pauta, na ocasião, era uma técnica de manipulação genética que ele começava a praticar e que, supostamente, permitiria a adultos soropositivos gerarem filhos biológicos sem o vírus da Aids. Não levei o assunto adiante, não me recordo por quê, e a matéria nunca saiu.
Roger Abdelmassih sempre se orgulhou de trabalhar com belas assistentes e, naquele mesmo dia, confessou-se satisfeito por ter uma clientela, digamos, bem apessoada. "Não é todo mundo que tem a chance de gerar filhos em tantas mulheres bonitas", brincou mais uma vez. O que eu não podia desconfiar, ali, era que aquele senhor corpulento e de bigodes transitava entre a realidade e a ficção com mais agilidade do que os melhores romancistas. E que, de maneira violenta e enojante, chegava mais perto de realizar essa sombria obsessão do que poderia sugerir seu ríspido humor.
Funcionava mais ou menos assim. O casal interessado em ter filhos contratava um pacote, normalmente de três tentativas. Pagava cerca de 40 mil reais pelo tratamento (ou 30 mil em dinheiro, sem recibo). Em cada tentativa, a mulher era sedada para a punção do óvulo, que seria fecundado e laboratório e reinserido no dia seguinte. Ao se refazer do efeito do sedativo, algumas mulheres lembram ter despertado com o médico debruçado sobre sua cama, acariciando-lhe os seios por sob o avental. Algumas dizem ter acordado com a mão envolvendo o pênis do médico. Três pacientes teriam sido penetradas, ainda sob o efeito do sedativo. Uma delas acredita ter havido intercurso anal. Muitas juram ter sido prensadas contra a parede e beijadas na boca quando plenamente acordadas: estranha maneira que Abdelmassih encontrava para "comemorar" um resultado positivo (ou, pelo menos, a conclusão de mais uma tentativa).
A perversão, aliada a uma alta dose de delírio, fez com que o médico-monstro transformasse os atos libidinosos em rotina. Sua divindade era realçada pela conjuntura: mulheres fragilizadas e casais ressequidos após muitos anos de gestações adiadas ou interrompidas depositavam no doutor o que ainda lhes restasse de fé e esperança. Era ele uma espécie de ente mágico capaz de realizar o sonho mais punjante daquela mulher (daquele casal) e expurgar a frustração por ter se descoberto estéril, o que não costuma ser uma notícia de fácil apreensão para a maioria de nós. Sendo assim, a fantasia de acalentar um bebê, de embalar o sorriso mais delicioso do mundo, encobririam a humilhação vivida. E, no tênue momento em que o óvulo fecundado ainda é uma possibilidade, às vezes ainda sob a guarda da clínica, o abuso desponta como o preço do resgate: "se eu perder a calma agora, e provocar um escândalo, porei a perder minha última chance de maternidade". Fora isso, como em quase todos os crimes sexuais, não há evidências. E, até janeiro deste ano, todos eram capazes de dizer quem venceria a guerra entre a palavra do médico e a palavra da paciente.
Fico imaginando o produto dessas denúncias em todos os casais que se submeteram à reprodução assistida na clínica do Doutor-Vida. "Será que eu também fui abusada?" ou "Será que a minha mulher foi uma das vítimas?" devem ser fantasmas muito presentes. Se trinta e poucas mulheres, encorajadas pela avalanche de acusações, procuraram o Ministério Público para denunciar o médico, é óbvio que outras dezenas, quiçá centenas, não têm a mais remota ideia do que pode ter lhes acontecido sob o efeito do tal sedativo. Filhos gerados na clínica talvez sejam alvejados por dúvidas semelhantes. "Minha mãe teve de passar por isso para que eu pudesse nascer?" Que efeito esse tipo de questionamento é capaz de produzir na vida dessas pessoas? Se houver algum profissional da comunidade psi lendo esse alongado texto, convido-o para me dar alguma pista incluindo-a ali embaixo, no campo dos comentários.


Ainda na sexta-feira passada, a clínica de Roger Abdelmassih amanheceu pichada. O muro branco do casarão da Avenida Brasil é decorado, agora, com as palavras "Velho Safado". Para quem até recentemente se proclamava Doutor-Vida, acostumar-se ao novo apelido será questão de tempo. Exigirá, sim, alguma dose de humildade, abnegação e sacerdócio - elementos que não devem faltar a um Deus como ele.

Nenhum comentário:

Postar um comentário