terça-feira, 27 de outubro de 2009

O príncipe e o mendigo

“As crianças devem ser muito indulgentes com as pessoas grandes” (Antoine de Saint-Exupéry)

Sabe aquele olhar terno e contemplativo que os humanos costumam encomendar toda vez que veem um bebê ou um cachorrinho simpático (a lhes sorrir latindo)? Normalmente, esse olhar vem acompanhado de um sorriso de aprovação, uma leve inclinação diagonal da cabeça e um “oh” prolongado e grave, meio gutural, meio chorado. Pois é esse mesmo olhar que a imagem do Pequeno Príncipe me provoca, até hoje, bem como as aquarelas do autor que ilustram a obra e alguma epígrafe livre, conferida aqui e ali, em canecas, cartões e “spams” amanteigados. Um moleque blasé de cabelos trigueiros, caga-regras e melindroso, inventado por um piloto cheio de manias para se tornar sucesso editorial focado no público infantil, teve êxito, veja você, na majestosa tarefa de me cativar – a mim e a uma pequena multidão de misses, incluindo aquelas que jamais leram uma linha de Saint-Exupéry (e só o conhecem por ouvir dizer).


Pois fui à Oca visitar o Pequeno Príncipe, recém-empossado rei e cacique do Ibirapuera. E não é que bateu aquela nostalgia boa? Encontrei a rosa, a raposa, o baobá. Passei uns bons minutos imaginando como seria o meu carneirinho caso um guri se aproximasse, de capa e mosquete, e me pedisse para fazer um desenho. Revolvi o interior dos meus mais íntimos vulcões e tive calafrios ao imaginar a fúria que moveria uma jibóia a engolir um elefante. Eu, que ainda criança me aprendi responsável por aqueles que cativasse e, depois de adulto (a maturidade não pede licença nem aceita recusa), aprendi que os espinhos não são capazes de tornar rosa alguma mais forte (ou menos carente), vislumbrei pela primeira vez a obra em sua dimensão histórica, temporal e, principalmente, sua íntima relação com a vida e o pensamento de seu autor. Gostei do que vi, com os olhos e com o coração.
***
Eram quatro horas da tarde quando deixei o Ibirapuera e estacionei o carro em uma travessa da Avenida Ipiranga, logo abaixo do antigo Hilton, para almoçar e tomar uma cerveja no Bar Dona Onça, no térreo do Copan. Foi só fechar a porta que um homem se aproximou, trazendo na face um olhar árido e profundo – bem diferente daqueles que costumam vir acompanhados de um sorriso de aprovação e de um “oh” prolongado e grave, meio gutural, meio chorado, de quando encaramos um bebê ou um cachorrinho simpático.
- Deixa dois reais que tá tudo certo – ele disse.
- Deixo na volta – respondi, acionando o alarme e virando as costas, convencido de que aquilo era a coisa mais normal do mundo.
Definitivamente, não foi a resposta certa, ou pelo menos não era a resposta que ele esperava.
- A gente não trabalha desse jeito por aqui – o homem avisou, virando as costas, aparentemente conformado.
- Como é?
- Esse jeito, de pagar depois...
Carregava na mão direita um copo de plástico de 500ml com a logomarca de uma empresa de refrigerantes estampada do lado de fora e meia dúzia de moedas a tilintar do lado de dentro.
- Eu não tenho nada agora – insisti. – Dou na volta, sem erro.
- Não me responsabilizo.
Aquilo era uma ameaça? Havia um alerta naquela voz? Um tom ameaçador? Não percebi. Ou percebi e, de cima da minha arrogância, um pouco despertada pela ousadia lacônica do principezinho caga-regras, não dei bola. E, faminto, entoei para mim mesmo um “então-tá” paciente, caminhando em direção ao bar, sentindo-me confortável graças ao movimento de pedestres pela redondeza – e de uma viatura policial que descia a Ipiranga naquele exato momento. Pude perceber os músculos retesados do flanelinha, e um vagar de olhos que denunciava urgência, quiçá paranóia, mas não rebeldia, raiva ou impulso destrutivo. A gente falha ao subestimar o poder estimulante da humilhação e da vergonha. A gente falha, também, ao subestimar o poder estimulante da fissura e da fome. “A fome tem que ter raiva pra interromper”, cantaram João Bosco e Aldir Blanc, certa feita, menos distraídos do que eu.
***
Quando voltei ao carro, duas horas depois, encontrei o para-brisa todo trincado, compondo um belo espiral (do tempo?).


Sorri. Um riso cansado e rendido, como quem pensa: “eu sabia!”. Um riso prostrado, de quem se percebe incapaz de desvendar o que circula na mente turva de um nóia sem perspectiva ou prognóstico. De um bar em frente, ébrios desalinhados me encaravam. Eles pareciam entusiasmados, à espera do início do espetáculo. Queriam ver minha reação. Queriam me ver esmurrar o capô, emputecido, e esbravejar para a rua vazia e também para eles. Não fiz nada. Entrei no carro, agradecido pelo fato de o homem do copo de plástico ter poupado meus pneus, e parti. “As crianças devem ser muito indulgentes com as pessoas grandes”, entoei, pela última vez.


Em quinze minutos, começaria, em um Gemini grisalho, o filme ao qual planejava assistir. Não fazia sentido perder tempo com picuinhas ou revolta. Eu intuía que aquilo me custaria quase R$ 300. E sabia que nenhum centavo seria revertido à nobre causa do irritado flanelinha. Sua paga, imediata e febril, foi a gloriosa sensação de vingança que deve ter jorrado em suas veias, cumprindo o papel de entorpecente e fazendo-o extravasar. Quando me acomodei na poltrona, a sessão já havia começado. Na tela, um músico genial, um compositor monstruoso, um marido apaixonado, um pai generoso, um guitarrista sempre agitado adaptava-se às circunstâncias e transformava a cadeira de rodas em pedestal. “A arte de viver da fé”, sussurrou Herbert Vianna em meus ouvidos, como se me afagasse os cabelos e me fizesse ver para além da janela, para além do para-brisa estilhaçado, para além do meu asteróide B612. Por certo, meu querido Pequeno Príncipe concordaria com ele. “É preciso que eu tolere duas ou três lagartas se quiser conhecer as borboletas”, arriscou Saint-Exupéry em seu livro.

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