sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Intermezzo polifônico

Com fotos de Alex Almeida

Um clarinetista cruza, apressado, o pórtico da antiga estação Júlio Prestes. Traz à mão o estojo, negro e rijo, como porta-jóias avantajado, proporcional ao tamanho do instrumento. Prestíssimo. Um trombonista percorre o saguão, pisando o ladrilho hidráulico como quem marca o ritmo de uma ária. Traz o metal engatilhado, pronto para o combate. Agitato.


Um violoncelista arrasta um armário colossal, sobre rodas, e busca espaço entre cadeiras e estantes até se acomodar no canto direito do palco. Allegro con brio. Uma contrabaixista, de calça jeans e cabelo em rabo, larga a sombrinha à sombra do instrumento, onde seus pés quase tocam o chão. Andante grazioso.


Faltam quinze minutos para o início do ensaio. É hora de desvelar violas e violinos, trazer à tona tubas e trompetes, submergir em um oceano sinestésico forjado em escalas e arpejos. Na intimidade, a música se agasalha em simbolismos: um santo salta do pau oco, uma harpista bate na madeira, um luthier estala os dedos antes de ajustar a palheta de um clarone para que o sopro se transforme em vida.


Vida sustenida, composta em breves e semibreves, mínimas e semínimas, colcheias e semicolcheias, fusas e semifusas.


À guisa de aquecimento, cada músico aninha-se em um canto (da platéia, do palco ou da coxia) e retoma o aprendizado da véspera. É evidente a predileção por frases ainda obscuras, compassos de sustentação precária e digitação imprecisa. Como atleta de quadra ou piscina, o músico em treinamento concentra-se nos pontos fracos e repete a mesma melodia duas, três, doze vezes, até dirimir falhas e fraquezas.


Em instantes, a Sala São Paulo veste-se de sons aleatórios: timbres dispersos e cadências urgentes, que se medem e se entrelaçam, feito pulseira de miçangas.


A polifonia se dissolve no momento em que o regente pisa o tablado. O caos exige reparos. Conserto para haver concerto. Agora, apenas o silêncio ecoa: um silêncio pleno, absoluto, instrumento primordial sem o qual não existe música. Nem ensaio.


À noite, os feiticeiros voltam transfigurados, trajando longos e fraques.

Casais sexagenários vestem óculos de leitura para conferir o programa. Executivos engolem um crepe de queijo e uma taça de cabernet sauvignon e correm ara ocupar seus lugares. Grupos de senhoras ajustam o penteado, indiferentes ao perfume de laquê, e cumprem, sempre juntas, a rotina ancestral de conferir as récitas da Osesp toda quinta-feira. Jovens músicos observam da plateia e sonham com a possibilidade de, um dia, transpor a ribalta e tocar no mesmo palco.


O terceiro sinal ressoa. Músicos se preparam. Uma batuta ergue-se para além do silêncio e desce tenaz. Começa o espetáculo.


//As fotografias que tecem esta crônica foram feitas por Alex Almeida nos dias 4 e 9 de setembro e compõem o ensaio Primeiros Movimentos, publicado na edição de outubro da Revista Época São Paulo.//

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