segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Um porreta

Fui ao Dops. Ou melhor, ao Memorial da Resistência, belo pavilhão de exposições inaugurado há alguns anos no mesmo prédio onde funcionou o Departamento de Ordem Política e Social, na Praça General Osório, até meados dos anos 1980. Fui ao Dops para conferir a mostra em homenagem a Carlos Marighella, assassinado pela repressão política em 4 de novembro de 1969, 40 anos atrás.


Negro, baiano, filho de um imigrante italiano com uma descendente de escravos, Marighella nasceu em 1911 e aproximou-se do comunismo ainda na juventude, quando deixou a faculdade de engenharia civil para se dedicar à militância em tempos de colunas e revoluções. Importante quadro do PCB, foi preso e torturado pelo Estado Novo, detido na ilha-presídio de Fernando de Noronha e eleito deputado pela Bahia. Nos anos rebeldes, rompeu com o Partidão e optou pela clandestinidade para se tornar o maior nome da guerrilha urbana no Brasil, o inimigo-público número 1 da ditadura.


Desempenhando o papel de líder máximo da Ação Libertadora Nacional, a ALN, Marighella foi perseguido durante meses e executado naquela noite de 4 de novembro, enquanto cobria um “ponto” (um encontro clandestino com aliados), na altura do número 800 da Alameda Casa Branca, no Jardim Paulista. Na tocaia montada pela polícia, Marighella foi alvejado por tiros à queima-roupa. Na farsa montada pela polícia, Marighella teria resistido à voz de prisão e revidado ao cerco. No circo montado pela polícia, seu corpo foi encontrado numa posição impossível, oposta à versão oficial, estendido no banco traseiro de um fusca e com os pés para fora.



Sem Marighella, a ALN manteve seu projeto. Continuou denunciando a violência do regime e promovendo atos que contribuíssem para jogar alguma luz sobre a escuridão do cárcere (e a escuridão daquele período). Atuou no sequestro do embaixador americano Charles Elbrick a fim de libertar companheiros que haviam sido presos e torturados (alguns correndo risco de morte), o que despertou os instintos mais perversos de Sérgio Paranhos Fleury e sua gangue. Pouco a pouco, a ALN – e a guerrilha, em geral – foi perdendo seus quadros (cada vez mais jovens e inexperientes) para o exílio, para o silêncio forçado, para a masmorra, o pau-de-arara, a cadeira-do-dragão, o suicídio e o desaparecimento. Com o governo Médici, os anos rebeldes viraram anos de chumbo e, em 1973, qualquer possibilidade de resistência armada estava praticamente encerrada.


Passados 40 anos de sua morte, Marighella recebe homenagens de mártir e é aclamado como herói por intelectuais, como Antonio Candido, e “analfabetos”, como o presidente Luiz Inácio da Silva (só para empregar, com a conotação irônica e bufa que a expressão exige, o termo grosseiro adotado na mesma semana por outro baiano, que jamais será lembrado como exemplo de coerência). Compreendido como baluarte da liberdade e da soberania popular, Marighella recebeu, na noite do último dia 4, na Câmara dos Vereadores, o título de cidadão paulistano (projeto de lei de Ítalo Cardoso aprovado na Casa). No Rio, manifestantes pediram que o nome da Praça Marechal Floriano, conhecida como Cinelândia, fosse trocado para Praça Carlos Marighella. Sua biografia, já celebrada em Batismo de Sangue, de Frei Betto, vai virar novo livro, pelas mãos de Mário Magalhães, e filme, pelas mãos de Isa Grinspun. Sinais dos tempos. Feliz o país que sabe reparar seus erros e devolver a vida a filhos que enterrou precocemente. Mesmo que o faça 40 anos depois.

Nenhum comentário:

Postar um comentário