domingo, 18 de abril de 2010

A viola do Ivan

São dez cordas, apenas. Dez cordas que entrelaçam o mundo. Da mesma forma que aprendemos a contar e a escrever qualquer número com apenas dez algarismos, bastam dez cordas para se arrancar de dentro de um bojo o vasto universo de sons e sentidos que habita a bela viola. Cinco pares, somente. Cinco duplas caipiras, emparelhadas lado a lado, que se completam e ampliam feito vozes terçadas. Primas, requintas, turina e contraturina, toeira e contratoeira, canotilho e contracanotilho. Violeiro é regente de coro, maestro a conduzir dez cordas canoras e a distribui-las em naipes como melhor lhe condiz. Por vezes, são dez solistas a esbanjar disciplina e audácia. Contraltos. Sopranos. Tenores. Barítonos. Ivan Vilela é um desses regentes: artesão a manipular fios de aço em melódica alquimia.


Enquanto escrevo, ouço seu mais novo CD, Do Corpo à Raiz, lançado há pouco pelo selo Kalamata: admirável iniciativa do amigo Antoine, que assumiu para si a missão de polvilhar o mercado fonográfico com ótimos registros de música instrumental brasileira. Em 13 faixas, Ivan apresenta músicas compostas por ele para um balé da Cia. Experimental Dança Vida, coordenada por Paula Vital. Sua viola é aqui acompanhada pela viola de arco de Paula Ferrão - que também adiciona violino e rabeca à confort food do álbum -, pela percussão de Cleber Almeida, o contrabaixo de Gilberto Syllos, o violão e a voz de Zé Esmerindo, o coral Madrigal in Casa e a outra viola caipira de Anderson Baptista, aluno de Ivan.


Desde 1998, Ivan não lançava um disco com composições próprias e inéditas. Seu álbum anterior havia sido o Dez Cordas (2007), inteiramente dedicado a arranjos feitos por ele para músicas de Chico Buarque, Tião Carreiro e até George Harrison, entre outros. Antes de Dez Cordas vieram Caipira (2005), um disco de clássicos da música sertaneja no qual sua viola se soma às vozes de Suzana Salles e Lenine Santos, e Quatro Estórias (2002), um "áudio-livro" com textos para crianças de autoria de Rubem Alves. Apesar da intensa produção, eu estava com saudade das peças instrumentais de sua autoria. Do Corpo à Raiz me deixou mais calmo, espécie de ansiolítico consumido com voracidade.
Em comparação com Paisagens (o disco de 1998), este me parece um pouco mais intimista, talvez meditativo. Se as composições de Paisagens nos remetiam facilmente à janela do carro, a maioria das faixas de Do Corpo... nos faz olhar para dentro. De certa maneira, é como se Ivan acertasse duas vezes nos títulos escolhidos. De resto, a novidade dialoga com o primeiro CD. Se, em Paisagens, Ivan arremedou um cururu, mostrou uma catira e apresentou o pagode-de-viola ao leigo, agora ele ataca de festa junina e arremata o trabalho com uma bandeira do divino. Há também um acalanto na música "Menino". Ivan ainda ousa citar a si mesmo, introduzindo na faixa "Catiras" uma sequência harmônica que me parece emprestada de "Pra Matar a Saudade de Minas", composição que abria, em 1998, seu disco de estreia. Em "Fogo" e em "Mistério", provavelmente as faixas de que mais gosto, o que ouvimos é a epifania resultante de um sertão a um só tempo rude e sensível. Como num verso de Rosa ou num compasso armorial, é possível escutar a seca, perceber o cheiro de feijão que emana do fogão a lenha, vislumbrar bezerros esquálidos a caminho do "córgo" (mera hipótese de riacho). Ou, simplesmente, sentar num degrau do alpendre para esperar, enternecido, o próximo disco de Ivan. Que ele venha sem pressa.

Um comentário:

  1. É facilmente notável a dança das cordas no baile das suas linhas. Um nobre post, cheio de cheiros, gostos, sabores e redondezas de quintal de casa. Café quente, cheiro de mato pelas linhas dedilhadas. Uma ótima receita.

    "espécie de ansiolítico consumido com voracidade". Creio que senti o mesmo quando ouvi o disco pela primeira vez.

    Amém aos que podem sentir esse mar de calmaria de Ivan Vilela.

    Abs,

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