domingo, 25 de abril de 2010

Fui "rapelado"

É difícil acreditar no efeito de um álbum de figurinhas na vida das pessoas - mesmo quando o álbum em questão traz mais de 600 jogadores que, em sua maioria, disputarão a Copa da África do Sul a partir de 11 de junho (em retratos quase sempre mal tirados, diga-se, e com um design pavoroso). Ao ler, na semana passada, sobre o roubo de 135 mil figurinhas em Santo André (SP), tive a certeza de que estamos diante de um fenômeno sobre o qual deveriam se debruçar, com urgência, psicólogos, sociólogos, antropólogos e, quero crer, a Receita Federal. Uma febre como esta, afinal, só pode ser lavagem de dinheiro disfarçada de hobby.

Recentemente, recebi um álbum da Fifa com meu exemplar do Estadão. Levei para a redação a fim de guardar a tabela dos jogos, publicada em uma das páginas: poderia ser útil no futuro. Lá chegando, deparei-me com um colega que acabava de percorrer o andar todo, vasculhando mesas alheias, pilhas de jornais do fim de semana e cestos de lixo reciclável à busca de um álbum perdido, esquecido, devoluto. No Facebook, na mesma tarde, ele postou que eu "salvei" seu dia. Dias depois, soube que ele comprara 50 envelopes de uma só tacada (embora não haja tacadas no futebol). Resultado: desconfio que sua mulher esteja até agora com vontade de me matar.

Outro amigo, na mesma semana, tentou explicar a paixão pelas figurinhas como um desejo súbito de voltar à infância por alguns minutos (ou meses). Sei bem a que ele se refere. Quando sinto este tipo de impulso, costumo fazer coisas ainda mais sinistras, como experimentar caretas em frente ao espelho ou encarar maratonas inteiras de Chaves. Quanto às figurinhas, misturam-se aí duas perversões: o desejo de retornar à infância e a obsessão por colecionar coisas. Nunca li nada sobre isso, confesso, mas desconfio que haja alguma explicação genética para o hábito das coleções. Eu, por exemplo, já colecionei muita figurinha num passado remoto (era doido por meu álbum da Copa de 90, aquele fracasso vergonhoso na Itália). Hoje, coleciono sapos. Sim, sapos, nos mais diversos estilos e tamanhos, incluindo canecas, imãs de geladeira e peso para papel. Avesso a boleiros, no entanto, estou longe de ser um dos 150 mil brasileiros que, segundo reportagem publicada na Revista Época desta semana, integram uma comunidade do Orkut dedicada à troca das repetidas.

Foto de Rogério Cassimiro publicada na Época

Agora, no universo das figurinhas, o mais divertido, na minha opinião, sempre foi disputá-las (literalmente a tapa), e não trocá-las. Por isso me surpreendo com a curiosa relação que a turma de hoje tem com suas coleções. Ainda não vi, pelo menos até agora, nenhum dos meus amigos "batendo bafo" por aí. Bafo, manja? Trocar figurinha, quando eu era moleque, era coisa de maricas. Nós, os machões da terceira série, se estivéssemos realmente dispostos a completar nossos álbuns, tínhamos o dever cívico e moral de conquistar as mais difíceis no jogo.

As batalhas eram travadas maioritariamente no chão do pátio da escola durante o intervalo. Ali, entravam figurinhas de tudo quanto era álbum: Impactus, Comandos em Ação, figurinhas de carros ou de skate. Só não aceitávamos meiguices como Moranguinho e Amar é... (por motivos óbvios). As regras variavam conforme a tradição oral adotada no colégio: leis consuetudinárias forjadas entre um recreio e outro. Em alguns, era permitido usar duas mãos (em uma concha capaz de entornar cinco ou seis cartas num único golpe). Outras vezes, valia "selar", o que, em bom português, significava dar uma lambida na palma da mão para favorecer a decolagem da figura.

Tive um trauma, naquele mesma terceira série, quando um cara dois anos mais velho me desafiou no bafo. Eu era bom entre os meus, garanto, e, naquele dia, chamei a atenção dos gigantes da quinta série por ter "rapelado" minha turma. Rapelar, no caso, era faturar todas as figurinhas da galera, passar o rodo, liquidar a fatura. Eu havia, naquela ensolarada manhã, me apropriado de dezenas de figurinhas do pessoal da minha classe. Desfilava orgulhoso e altaneiro com um montinho de pequenos troféus amarrados com um elástico quando esse cara me intimou. Topei, é claro, apesar de saber que havia uma porção de figurinhas "carimbadas" naquele monte, convencido pelos dois palmos de altura que ele tinha a mais do que eu - e sem imaginar que sua retórica e sua habilidade em argumentar me fariam aceitar, instantes depois, sua condição: "a gente só vai parar quando um de nós tiver perdido todas as figurinhas". De tão cretino, entrei no duelo com 50 ou 60 figurinhas, enquanto ele não tinha mais de dez. É claro que, meia hora depois, fiquei com as mãos vazias. Fui "rapelado". Tinha nove anos na ocasião.

Voltei para casa com um bico enorme, decidido a nunca mais jogar com homens mais velhos. E, se fosse para entrar num duelo daqueles, em que a partida só termina com a morte do adversário, jamais entraria com mais cartas do que o adversário. O para-efeito do meu fracasso foi que meu desempenho nas provas de matemática melhorou consideravelmente depois daquele episódio. Agora, os riscos de cada aposta eram calculados com a gravidade exigida de um gambler da Las Vegas. E tino de investidor.

Será que eu saberia bater bafo ainda hoje?

Um comentário:

  1. Gostei tanto do seu post, que o comentário tomou vida própria e virou meu post de hoje...
    http://chrissevla.blogspot.com/2010/05/eu-batia-bafo.html

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