domingo, 1 de maio de 2011

O troço mais sagrado dessa vida

"We don't see things as they are; we see them as we are". A frase é da escritora Anaïs Nin, mas poderia ter sido cunhada por algum teórico da psicanálise.

***

Flávio chegou chateado ao café.
- Rosa me dispensou.
- Rosa? Vocês estavam juntos?
- Ela me dispensou como amigo, entende? Dispensou minha amizade.
- Como assim?
- Disse que agora nossa relação é estritamente profissional, que seremos apenas colegas de trabalho.
- Que estranho. Vocês pareciam unha e carne.
- Mais unha do que carne, parece...
- Deixa disso, Flávio, vocês eram tão amigos.
- Pois é. Nossa amizade deve ter vencido. Será que as amizades, como os queijos e os iogurtes, têm prazo de validade?
- Sei lá. Nunca ouvi falar nisso. Mas é definitivo? Quero dizer, não tem volta?
- Como vou saber? Só posso conversar com ela sobre coisas de trabalho. Ela me pediu para conversarmos apenas de segunda a sexta. E em horário comercial. Fora disso, nada de telefonemas, torpedos ou e-mails pessoais.
- Por que isso? Colega de trabalho só se fala em horário comercial?
- É, eu também não entendi direito.
- Estranho. Eu costumo jogar bola toda terça com a turma da agência e não vejo nada de errado nisso. E no domingo passado fizemos um churrasco na casa do Sérgio. Foi sensacional.
- Verdade. Rosa também costuma encontrar a turma fora do expediente. Vai ao cinema com o Luiz, combina com a Renata e o Ricardo de irem tomar chope com bolinho de bacalhau no Filial... No mês passado, encontrou a Priscila e o Adriano na praia.
- Então deve ser alguma coisa pessoal.
- Deve ser. Não sei. Também, não quis insistir. Ela estava decidida. Só queria falar, falar, falar. Sabe como ela é, adora decidir tudo sozinha.
- Você deve ter feito alguma coisa de errado, não é possível.
- Fiz, sim. Fui irônico ao chamar a atenção dela no trabalho. Ela ficou chateada. Depois tentei abraçá-la para resolver o mal-entendido e ela me interpretou de maneira equivocada. Achou que era intimidade demais. E na frente de todo mundo. Deve ter sido a gota d'água.
- Mas você sempre foi irônico. Com todo mundo, aliás. E saliente, também, se me permite dizer. Porra, a amizade de vocês sempre foi tão bonita...
- É, mas um gerente não deve ser irônico. Nem abraçar funcionárias na frente dos outros, não é? Muito menos assim, na loja, na frente das outras vendedoras. Ela tem razão.
- Você coloca como se a relação de vocês fosse apenas isso, a de um gerente e uma vendedora.
- Ela quer assim, uai. Quer dizer, eu também não entendi direito, confesso. Por isso estou até agora sem saber o que fazer. Sempre fiz questão de repetir a ela que, se tivéssemos de escolher entre a relação de amizade e a relação profissional, que optasse pela relação de amizade.
- Eu lembro. Quando você virou gerente você disse isso para todos nós. E quando eu deixei o grupo, percebi o quanto foi legal ter ouvido isso. A gente passa mais de oito horas por dia no trabalho, tem mais é que estabelecer uma relação gostosa. Se não, vira tudo robô, tudo maquininha de apertar botão.
- Pois é. No meu conceito, a gerência é circunstancial, você sabe. Amanhã a chefe pode ser a Rosa. Ou poderia ser você, se você não tivesse nos deixado. A amizade, não. Amizade é o troço mais bonito que existe. E pode durar para sempre. Se for sincera, construída em alicerces resistentes, se puder sobreviver às intempéries do tempo, do espaço, das porradas que a vida dá. E se puder sobreviver à estupidez do outro, é claro.
A garçonete chegou com nossos cafés. Um curto para ele, um capuccino para mim. De vez em quando, gostava de dar uma passada no shopping para tomar um café com o Flávio, colocar o papo em dia. Ele parecia viver nesse shopping, era sempre o primeiro a chegar à loja e o último a sair. Nada mais justo do que promovê-lo à gerência. O gozado é que, até agora, ele ainda não havia aprendido direito a lidar com os perrengues da atividade de chefia, a burocracia, os trâmites hierárquicos. O negócio dele sempre foi ficar junto da companheirada, sair pra beber, falar besteira, falar mal do chefe. Parece que a farda de chefe não lhe cai direito, sobra pano nos ombros, nas mangas. E, dessa vez, ele parecia realmente chateado com os acontecimentos mais recentes. O leitor precisava estar ali, conferir o jeito como os olhos dele ficaram úmidos ao dizer essas coisas bonitas sobre a amizade.
- E você disse isso a ela? - perguntei.
- Não adianta...
- Você não disse isso a ela?
- Não. Acho que não.
- Pois devia.
- Não posso. Ela só vai me escutar se for assunto relacionado a trabalho. E de segunda a sexta, na hora do expediente.
- Ela não é tão cabeça dura assim.
- Não? - a boca se abriu no primeiro sorriso do dia - Ih, acho que você não sabe da missa a metade.
- Bom, preciso dizer que você não fica muito atrás.
- Tem razão. O fato é que ela me dispensou. E pronto. Acho que foi a primeira vez que eu fui dispensado por uma amiga. Sensação estranha. Confesso que eu sempre havia pensado na Rosa como minha grande amiga, talvez a maior de todas. Desde o dia que fomos contratados para inaugurar essa unidade, anos atrás, pintou uma sinergia, sabe. Uma identificação. Um carinho mútuo. Não imaginei que fosse acabar assim, por causa da relação de trabalho. Trabalho é mesmo uma merda. Só serve para empatar a vida da gente. O pior é que meu lado gerente é a pior parte de mim. Sempre pensei que eu pudesse me virar melhor como amigo do que como gerente. É como o cara que vai tirar foto de uma modelo, descobre qual o melhor perfil e decide fotografar o outro lado.
Flávio e Rosa eram mesmo muito próximos um ao outro. Teve muita gente na loja que, por um bom tempo, cochichava pelos cantos, maliciosa, certa de que os dois tinham um caso. Gente maldosa. Eles nunca tiveram, tenho certeza. Mas era bonito ver como os dois se entendiam e até se protegiam. Acho até que o Flávio quis tentar alguma coisa com ela, tempos atrás, mas ela não correspondeu. E mesmo ele, casado e pai de família, deve ter sublimado rapidamente os desejos mais vulgares em nome do bom senso, e também em nome daquela amizade bonita. Agora, as histórias que ele me contava desenhavam uma Rosa diferente, avessa, desconfiada. Ele deve ter mudado muito desde que assumiu a gerência. Deve ter virado um cara grosseiro, petulante. No mínimo arrogante.
- E se ela voltar atrás? E se ela se arrepender?
- Não vai acontecer.
- Por quê? Nunca te vi pessimista antes.
- Não vai acontecer. Ela está convencida de que é melhor assim. Além disso, quem consegue ser amigo de uma pessoa que o vê apenas como chefe, sem nenhuma vontade de compartilhar planos, tristezas, expectativas. Amizade não é coisa técnica, racional, treinada segundo os preceitos da aritmética e da engenharia. Você conseguiria ser amigo de alguém que só vai atender a um telefonema seu de segunda a sexta? E na hora do expediente?
- Acho que não.
- Pois é. Minha mãe dizia que a diferença entre amigo e parente é que amigo a gente escolhe. No caso, fui desescolhido. Agora, o jeito é lidar com isso.
- Pelo menos as vendas estão indo bem, não é?
- Ah, sim. Muito bem, graças a Deus.

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Jagunço Riobaldo sabia das coisas:

"Pensar mal é fácil, porque esta vida é embrejada. A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar. A senvergonhice reina, tão leve e leve pertencidamente, que por primeiro não se crê no sincero sem maldade."

"Não convém a gente levantar escândalo de começo, só aos poucos é que o escuro é claro."

"Amigo, pra mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira o prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios."

"Ou - amigo - é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por que é que é."

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Quando era criança, costumava me emocionar toda vez que ia à casa da minha tia, em Hortolândia, e lia uma mensagem gravada em um pôster fixado sobre painel de madeira e exposto na parede. Houve um tempo, até os anos 1980, que era muito comum comprar esses quadros em feiras hippies e espalhá-los pela casa. Quadros com mensagens escritas ou com retratos de ícones pop. O rosto do Che é, de todos, o mais conhecido. Imagens de John Lennon e de Charles Chaplin também eram sucesso de audiência. E a casa da minha tia tinha todos esses. O meu preferido tinha um texto apócrifo intitulado "Procura-se um amigo". Rivalizava, na cafonice dos meus sentimentos púberes, com outro quadro, delicioso de ler, com um poema chamado "Instantes", também apócrifo, e que muita gente desinformada atribuía a Jorge Luiz Borges. Esse outro, o "Procura-se um amigo", tem sido publicado em uma batelada de blogs por aí como se fosse obra de Vinícius de Moraes. Não ponho a mão no fogo por ninguém, mas resisto a acreditar que seja cria do Poetinha. Não é. Pelo menos até que se prove o contrário. Vamos ao texto:

Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.
Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoa tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.
Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.
Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.

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"El cariño que te tengo
No te lo puedo negar"
(Compay Segundo, em "Chan Chan")

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Eu quero ter um milhão de amigos... Um milhão de amigos, o caralho! Eu quero ter três ou quatro, não preciso de mais. Três ou quatro que me ajudem a fazer de mim uma pessoa melhor. E que valham por um milhão.

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"João viu, entre os papéis da minha mesa, um álbum que nós tínhamos feito com recortes de jornais até 1961, de fotografias e desenhos sobre a conquista espacial. Na capa, estava escrito: 'A Conquista do Espaço', por João Alfredo Galvão e Edgar Paranhos Ribeiro.
- Você estava fazendo arrumação? - ele perguntou.
- Estou precisando de espaço. Toda hora compro um livro, disco, tem muita coisa pra jogar fora.
Tanta coisa pra jogar fora... João ficou folheando o álbum, ali, justo naquele momento.
- A cachorrinha, a Laika, o primeiro ser vivo que mandaram pro espaço... - ele começou.
- Você achou a maior sujeira terem mandado sozinha.
- Quantos anos a gente tinha, Edgar?
- Uns 11, 12, eu acho.
- Eu ficava imaginando a cadela sozinha lá em cima, uma solidão danada...
- Apesar de ter sido ideia dos russos - eu provoquei, amigo de novo.
- O Gagarin, olha aqui! Essa parada vocês perderam - ele devolveu.
Foi. Perdi a aposta e paguei cinco bananas-split no Cinema Pax, maior prejuízo na mesada. O 'sem-limite' ali comeu os cinco, na hora. Não lembro por que a gente parou de fazer o álbum.
- Qualquer dia o homem tá pousando na lua, Edgar. A Maria Lúcia, quando ela brigou comigo, vocês namoraram, doeu pra burro, mas eu continuei seu amigo. Eu acho que amizade...
João olhou para o álbum, pegou, perguntou se eu ia jogar fora. Eu não ia. E ele quis saber:
- A nossa amizade, você tem certeza que, puxa, não dá pra fazer um esforço, Edgar?
- É. Eu tenho que tentar, sim.
Ficamos abraçados um tempo, no meio do quarto. Abraçados forte. E o João fez um último pedido.
- Eu queria, no dia em que o homem pisar na lua, do jeito que está indo o avanço tecnológico, se passar na televisão, amizade pra mim é o troço mais sagrado dessa vida, Edgar. A gente podia ver junto e... Vamos ver juntos, sim. Vamos ver juntos e completar o álbum.
Você já leu O Encontro Marcado, do Fernando Sabino? Pois é. Eu topei, concordei demais.
Eu gostei muito do João. Eu amei o João, acho que o amo até hoje. A única vez na vida em que eu lamentei não ser homossexual foi por causa do João. Mas aí, ele não era, não ia adiantar nada, ia ser outro sofrimento."
(Sérgio Marques e Gilberto Braga, Anos Rebeldes, 1992)  

***

E nós, podemos fazer um esforço?

Um comentário:

  1. eu só vi a cena do album uma vez, qdo Anos Rebeldes passou pela primeira vez na TV. Deve ter sido em 91 ou 92. 20 anos se passaram e na segunda linha eu já revi a cena toda na minha cabeça. coisa linda de verdade. tomara que vocês possam, sim, fazer esse esforço ;)

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