domingo, 14 de março de 2010

Sabático

Sou um cara meio antiquado. Careta, talvez. Um homem de trinta anos que dorme de pijama, curte João Gilberto, chama milkybar de "lolo" e nunca tomou energético. Os tons grisalhos se estendem também a meus livros e autores preferidos, irremediavelmente imersos em uma fina camada de poeira (como eu).


Embora recorra com certa frequência a best-sellers contemporâneos - e minha biblioteca esteja cheia de anjos, demônios e caçadores de pipas - não há labradores nem vampiros capazes de superar, na minha retrógrada predileção, os desajustados de Rosa, os funcionários públicos de Machado e as deliciosas amantes de Jorge Amado.
Sou um conservador apaixonado por livros, daqueles que têm "o olho maior que a barriga", adquirem mais do que conseguirão consumir pelo resto da vida e têm enorme dificuldade em se desfazer deles. Minha casa, aliás, está cada vez menor por conta disso. Gosto, também, de vasculhar o íntimo desses livros e autores, entender o contexto em que as obras foram escritas, verificar o que a crítica publicou na época da primeira edição, saber quem era casado, quem era homossexual, quem flertava com os russos, quem mantinha relações espúrias com a ditadura de Getúlio. Escritores são, direta ou indiretamente, cronistas por excelência de seu tempo. Há os jornalistas, é claro. Mas nenhum de nós tem o hábito de folhear, numa manhã qualquer de quinta-feira, um exemplar da Folha da Manhã ou da Província de São Paulo prensado em 1914, embora qualquer um possa esticar o braço e alcançar, na prateleira, um exemplar de Quincas Borba, lançado de 1891.
Antiquado que sou, tenho alguma reserva ao pensar em livros digitais. Nem o nome desses aparelhinhos eu guardo. Foi a Amazon que lançou, recentemente, como chama mesmo? A Apple respondeu em seguida com uma plataforma semelhante, deus do céu, qual o nome? Você, leitor, deve saber melhor do que eu. O fato é que ainda não peguei nenhum deles na mão. Curiosidade não me falta. Uma curiosidade descrente, é claro, como quem admira um quadro que jamais colocaria na própria sala. Posso estar errado. Normalmente estou. Mas, por enquanto, acho divertidíssima a ideia de levar ao banheiro uma tela dessas - para, quem sabe, ler ali um texto escrito há mais de cem anos. Ou mil.


O Estadão deste sábado trouxe um novo caderno de literatura. Na primeira edição do Sabático, o mesmo assunto foi abordado em uma entrevista com Umberto Eco, autor de um livro sobre o fim do livro. Para ele, essa fixação é conversa-mole, papo-furado de jornalista. ""O livro, para mim, é como uma colher, um machado, uma tesoura, esse tipo de objeto que, uma vez inventado, não muda jamais", disse o autor de Nome da Rosa. Da mesma forma que a serra elétrica não acabou com o machado e a televisão não liquidou o cinema, as novas tecnologias não substituirão o livro convencional na concepção de Eco. Gosto de pensar assim, com a mesma intensidade que gosto de dobrar a pontinha da folha, de grifar uma frase que me chama atenção, de ouvir João Gilberto e dormir de pijama.
O Sabático dialoga muito bem com esse público ultrapassado do qual faço parte. Gostei especialmente de uma seção publicada na página 3, que trouxe fragmentos de uma resenha publicada no mesmo Estadão em 1956. Assinada pelo mestre Antonio Candido, discorre sobre a primeira edição de Grande Sertão: Veredas, o romance corajoso e insuperável de Guimarães Rosa. "Estupenda visão do mundo e a inquietude interior elaboradas ao longo do seu fluxo de aloquencia e poesia", assinala o crítico. "(No livro) o aproveitamento literário do material observado na vida sertaneja se dá 'de dentro pra fora', no espírito, mais que na forma", acrescenta. Tomara que essa seção, "Do Suplemento Literário", seja preservada nas próximas semanas.
O escorregão do caderno, penso eu, foi manter quase inalteradas a sisudez e o marasmo do Cultura. A seção "Estante", com dicas de lançamentos, continua presa ao academicismo (e ao pedantismo) de publicações pouco palatáveis ao brasileiro comum. As duas matérias principais da edição são dedicadas a Umberto Eco, 78 anos, e ao poeta Manoel de Barros, 93, ambos entrevistados pelos jornalistas da publicação. Entre as resenhas, a maior delas é dedicada ao relançamento de um romance de Liev Tolstói concluído em 1905, quando o russo tinha 82 anos.
O que eu questiono aqui não é, evidentemente, o valor desses livros e autores, mas a opção do jornal em valorizar demasiadamente autores octagenários, já tão conhecidos, num país que carece de incentivos à nova geração. Será que só Umberto Eco, Manoel de Barros, Guimarães Rosa e Tolstói fazem boa literatura? Será que há um limite mínimo de idade para ingressar no puído mundo do novo caderno? O que eu gostaria mesmo era de saber dos bons autores que estão pintando por aí, da molecada que manda bem, e que o jornal tivesse a ousadia de dedicar espaço também a eles. Se não, quando eu comprar meu kindle - lembrei o nome! - não terei nada além de Machado e Tolstói para baixar.

Um comentário:

  1. oi meu balzaquiano, adorei o texto.
    também sou do time dos empoeirados. o antigo também é minha preferência, mas dessa "moçadinha" tem muita gente boa sim em atuação. Tem o MArcelino, o nazarian, o chico e tantos outros. É só saber pescar e se enveredar na leitura ;)

    kizzy

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