domingo, 3 de abril de 2011

E ainda dizem que é coisa do passado

Dá só uma olhada na foto abaixo. A moça do retrato se chama Graziella Schmitt. Tem 29 anos, é atriz, começou a carreira como paquita, atuou em Malhação e, na próxima terça-feira, fará sua estreia - de faixa no cabelo e blusa estampada - como a protagonista de "Amor e Revolução", nova novela do SBT.


No folhetim, a bela viverá a guerrilheira Maria Paixão, militante de uma organização revolucionária disposta a pegar em armas para derrubar a ditadura. Depois de servir de argumento para a minissérie "Anos Rebeldes", de 1992, o governo militar volta às telas, justamente na emissora de Sílvio Santos, o ex-camelô que sempre se esquivou de temas políticos e, por décadas, preferiu importar novelas mexicanas a investir em uma teledramaturgia nacional. Em entrevista publicada hoje no Estadão, Graziella diz "amar" o tema escolhido pelo autor Tiago Santiago, que além de dramaturgo é cientista social com mestrado em sociologia. Afirma ter feito, ainda, treinamento com armas de fogo para melhor se preparar para o papel. Antes das gravações, o elenco também participou de oficinas com a presença de ex-guerrilheiros, presos e torturados nos anos de chumbo, como Rose Nogueira e Maria Amélia de Almeida Telles, que perderam parentes na luta.

Por ser uma novela do SBT, é impossível saber de antemão se as boas intenções da atriz, do autor e do diretor serão revertidas em um produto televisivo de qualidade ou se terminarão, como muitas vezes ocorre, por ofender a inteligência dos espectadores. O que se pode afirmar, desde já, é que o assunto, ao contrário do que se diz por aí, continua presente na mente dos brasileiros, na curiosidade do público e no dia a dia das instituições. O galã da novela "Araguaia", só para citar outro folhetim em cartaz, descende, segundo a sinopse, de um guerrilheiro que atuou nos focos rurais formados no Bico do Papagaio no início dos anos 1970 pelas frentes do PCdoB.

Na semana que passou, tivemos o aniversário de 47 anos do Golpe, também chamado de Revolução de 1964 ou simplesmente de "gloriosa" pelos signatários do regime de exceção. Pouco se falou sobre o assunto na TV, o que deve, sim, ser encarado como sinal de vitória da democracia. Poucos anos atrás, havia marcha militar, salva de tiros e loas aos borbotões. Mas houve quem celebrasse a data. "31 de março de 1964: PARABÉNS FORÇAS ARMADAS, PELO ANIVERSÁRIO DO REGIME MILITAR DEMOCRÁTICO BRASILEIRO", twittou, em letras graúdas, o vereador Carlos Bolsonaro, filho do personagem mais polêmico da semana, o deputado Jair Bolsonaro - militar que entrou para a vida pública nos anos 1980 e, desde então, tem se dedicado a esculhambar negros e homossexuais. Na última segunda-feira, o programa "CQC" exibiu entrevista com Bolsonaro, na qual o deputado afirmou, entre outras coisas, que seu filho não seria "promíscuo" para se casar com uma negra. "Meus filhos foram muito bem educados", explicou (confira vídeo abaixo). Em seguida, tentou consertar e acabou se enrolando ainda mais. "A resposta dada deve-se a errado entendimento da pergunta - percebida, equivocadamente, como questionamento a eventual namoro de meu filho com um gay", justificou, em nota. As negras não são promíscuas, mas os homossexuais, sim. Triste o país que tem parlamentares como este.


Lembro que, anos atrás, foram divulgadas fotografias da porta do gabinete do deputado, na qual havia um cartaz afixado, com um desenho de um cão e a seguinte mensagem sobre a busca de ossadas no Araguaia: quem procura osso é cachorro. É esta a personalidade de Bolsonaro. Será que ele assistirá à próxima novela do SBT?


O que me dá algum alento, nessa história toda, é perceber o quanto o tema continua firme. Acabo de ler a primeira edição da revista GQ Brasil, lançada agora mesmo em abril pela recém-criada joint venture Edições Globo Condé Nast, e tive uma grata surpresa ao me deparar com a reportagem do Lucas Figueiredo sobre o Araguaia. Lucas Figueiredo é um jornalista da peste, autor de um ótimo livro chamado "Olho por Olho", no qual desvenda os meandros da produção de dois petardos editoriais compilados nos anos 1980 sobre a ditadura, um pela resistência democrática, o "Brasil: Nunca Mais", o outro pelos militares, o "Orvil". Na primeira edição da GQ Brasil, ele dirige seu olhar para o foco da guerrilha rural e revela de que maneira os coronéis cooptaram índios da região para que caçassem (e degolassem) os "paulistas", como eram chamados os comunistas aquartelados na área. Coisa boa, fruto de apuração da melhor espécie, e logo em uma publicação com chancela americana, dedicada ao público AA, entre páginas de luxo, estilo e comportamento.


Não bastasse, está em cartaz em São Paulo, no Memorial da Resistência, uma exposição sobre os 40 anos do "desaparecimento" do deputado Rubens Paiva, mais conhecido das novas gerações como "o pai do Marcelo Rubens Paiva". O parlamentar sumiu do mapa após ser preso e torturado pelas forças da repressão. Até o dia 10 de julho, a mostra perpassa sua atividade legislativa, seus últimos dias de vida, e reúne fotografias, algumas inéditas, capazes de reconstruir o legado deixado por mais uma vítima da ditadura, da qual ainda não se encontraram os ossos.  


Na GQ, nos jornais, na TV e nas redes sociais, é nítido o quanto ainda se buscam respostas para as dúvidas que ainda pairam sobre os anos de chumbo, sobre os tempos da ditadura. E ainda tem gente que diz que é coisa do passado, que não há motivos para se tocar no assunto.

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