segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

É pique!

São Paulo, aniversariante do dia, só podia mesmo ser de aquário. Os acontecimentos recentes confirmam a exatidão da astrologia.

O pior é que, no encalço do peixinho acima, tem muita gente tentando escapar desse aguaceiro.

Pesquisa recente, encomendada ao Ibope pelo Movimento Nossa São Paulo, mostrou que 57% dos paulistanos gostariam de deixar a cidade, se pudessem.

Nunca foi tão grande a procura por lanchas e botes na região metropolitana. É a inflação do mercado náutico, comprovada pelos melhores analistas.

Saudade da terra da garoa.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A vida muda

Contribuição de Ferreira Gullar
ao Tudo Cabe, extraída do poema
Dentro da Noite Veloz, de 1975:




"A vida muda como a cor dos frutos
lentamente
e para sempre
A vida muda como a flor em fruto
velozmente
A vida muda como a água em folhas
o sonho em luz elétrica
a rosa desembrulha do carbono
o pássaro, da boca
mas
quando for tempo
E é tempo todo tempo
mas
não basta um século para fazer a pétala
que um só minuto faz
ou não
mas
a vida muda
a vida muda o morto em multidão"

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Sábio esse D. Paulo

"Que morte linda", teria dito o cardeal e arcebispo emérito de São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns ao tomar conhecimento da morte de sua irmã, Zilda Arns, no Haiti. Quem conta a história é Paulo Moreira Leite, em catártico (e saudoso) obituário publicado na edição de ontem da Revista Época. Zilda, treze anos mais jovem do que o irmão, estava desde 1982 à frente da Pastoral da Criança. E assumira o compromisso de criar a entidade, nos estertores do regime militar, por intermédio do mesmo Dom Paulo. Foi ele, afinal, quem sugeriu o nome de Zilda, médica sanitarista e pediatra com atuação no Paraná, ao secretário executivo do Unicef, James Grant, que viera ao Brasil com a missão de convencer o próprio arcebispo a subscrever a empreitada. O cardeal declinou, por falta de tempo e por saber que a tarefa de reverter as taxas de mortalidade infantil registradas no país exigiria dedicação exclusiva, mas indicou ao cargo a melhor pastora que se podia prever. Sua reação à notícia da fatalidade expressa o sincero pensamento de um homem que, imprescindível como poucos, reconhece no amor e na missão os mais belos sinônimos da palavra vida: sem amor e sem missão, a vida é existência errática, música em suspensão, vir-a-ser sublimado em semente inerte.


Dom Paulo vive hoje em uma casa de repouso em Taboão da Serra, município da Grande São Paulo. Aos 88 anos, tem a saúde debilitada, respira com a ajuda de aparelhos, não dá entrevistas e restringe o fluxo de visitantes aos familiares e amigos mais próximos. No entanto, continua lúcido e com a mesma garra do tempo em que desafiava o Vaticano e deixava constantemente a cúria metropolitana para visitar presídios e espernear contra os abusos do regime militar. Denunciou a tortura de presos políticos e trouxe repercussão internacional às denúncias. Celebrou missas em memória de Alexandre Vannucchi Leme (1973) e Vladimir Herzog (1975), os dois maiores eventos de repúdio à ditadura ocorridos na Catedral da Sé, e gravou seu nome no panteão dos defensores dos direitos humanos. Entre 1979 e 1985, esteve à frente do grupo de advogados, jornalistas e ex-presos políticos que listaram os nomes de mais de 400 torturadores, mais de uma centena de mortos ou desaparecidos sob as mãos do Estado, e discorreram em minúcias sobre as técnicas de tortura utilizadas nas catacumbas. Publicado em 1985 com o título Brasil: Nunca Mais, o livro se tornou o mais importante registro dos bastidores dos anos de chumbo. A história deste livro é contada em outro livro, Olho por Olho, que rendeu a Lucas Figueiredo o prêmio Vladimir Herzog de livro-reportagem no ano passado.


Ao lado de Olho por Olho, outro livro publicado em 2009 que ajuda a explicitar o papel libertador desempenhado por Dom Paulo a partir dos anos 1970 é Fé na Luta, da historiadora e cientista política Maria Victoria Benevides. Focado na trajetória da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, um grupo de voluntários arregimentado pelo cardeal em 1971 para atuar na defesa dos direitos humanos em diversas frentes, o livro reconstrói um período de trevas durante o qual apenas um homem da envergadura de Dom Paulo poderia carregar o lampião. Ainda em 2004, colaborei com algumas pesquisas que auxiliaram Maria Victoria na redação do livro, trabalho do qual muito me orgulho.



Esse mesmo Dom Paulo, ainda mais franzino do que antes (irrevogável ação erosiva do tempo), é o nome que encabeça, segundo o jornal Folha de S. Paulo, um abaixo-assinado encaminhado recentemente ao Presidente Lula em apoio ao Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3), o mesmo que vem sendo duramente criticado por setores mais conservadores da Igreja, da mídia e da sociedade civil. Ao lado de nomes como Chico Buarque e Fernando Morais, Dom Paulo estende seu desagravo ao mesmo programa que, na última semana de dezembro, causou espécie nas Forças Armadas em razão da proposta de se cobrar delas um mea culpa - que culmine na confirmação de que o regime militar adotou a tortura como prática oficial de repressão política - e uma resposta conclusiva frente aos apelos encaminhados há 40 anos por familiares de mortos e desaparecidos para que se devolvam os corpos e se confirme o que aconteceu com cada um. Se alguém for até Taboão da Serra e tiver a oportunidade de perguntar a Dom Paulo o que o faz defender com tamanho afinco essa proposta, é possível que seja brindado com uma citação bíblica, do Evangelho de João. "Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará", resumirá o cardeal, a um só tempo sereno e impávido. Sereno e impávido como sempre foi.

Que vida linda, Dom Paulo!

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

O bom combate

Não dá para ganhar todas, diz a sabedoria popular (ou pelo menos a intuição popular). Pena que perder seja tão chato. E triste. Principalmente para quem, em razão da sorte ou da persistência, coleciona mais vitórias do que derrotas. Na hora de contar os mortos e dimensionar os danos, é sempre bom lembrar o poder construtivo das derrotas. Mais do que nos derrubar, elas nos ajudam a olhar para trás com humildade, reconhecer equívocos, entender melhor a conjuntura e prospectar possibilidades. Bravos são aqueles que concebem a derrota como intervalo criativo, contratempo em samba sincopado, ano sabático merecido entre uma vitória e outra.



Diante da iminência de uma importante derrota no campo pessoal - e acompanhando de perto a iminente derrota, desta vez no campo ideológico, de uma pessoa próxima a mim - tenho pensado em como é penosa essa história de transformar perda em bônus. Renascer das cinzas como fênix. Brotar da lama como flor-de-lótus. Pensativo, busco respaldo no legado deixado por pessoas mais inteligentes do que eu e tento aprender com o poema em linha reta ("todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo") e com a carta de Paulo a Timóteo ("combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé").

Principalmente, transformo em espada os versos cantados por Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro na canção Mordaça para cravá-la, verdade maior, acima de derrotas e vitórias: "o importante é que a nossa emoção sobreviva".

Tudo o que mais nos uniu separou.
Tudo que tudo exigiu renegou.
Da mesma forma que quis recusou.
O que torna essa luta impossível e passiva?

O mesmo alento que nos conduziu debandou.
Tudo que tudo assumiu desandou.
Tudo que se construiu desabou.
O que faz invencível a ação negativa?

É provável que o tempo faça a ilusão recuar.
Pois tudo é instável e irregular.
E de repente o furor volta,
o interior todo se revolta
e faz nossa força se agigantar.

Mas só se a vida fluir sem se opor.
Mas só se o tempo seguir sem se impor.
Mas só se for seja lá como for.
O importante é que a nossa emoção sobreviva.

E a felicidade amordace essa dor secular,
pois tudo, no fundo, é tão singular.
É resistir ao inexorável,
o coração fica insuperável
e pode, em vida, imortalizar.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Prenderam o Lula

Foi em 1980, no dia 19 de abril, quando o presidente da República ainda era apenas um presidente de sindicato. Trinta anos antes de se tornar "o cara" e ter sua biografia registrada no panfleto hagiográfico de Fábio Barreto, Lula comandou a maior greve de trabalhadores do ABC Paulista, então considerado a "locomotiva" econômica do País. Historiadores e cronistas afirmam que ele soube, naquele momento, aproveitar a visibilidade conquistada para fundar um partido e dar início à ascensão política que, mais tarde, o alçaria à posição de líder mundial incontestável. Para isso, foi preciso pagar um preço: o preço de passar 31 dias detidos em uma cela do Dops.


Naquela época, fazer greve era ilegal - e quem insuflasse a desordem poderia ser taxado de subversivo e enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Foi o que aconteceu com Lula, que dividiu uma jaula de 25 metros quadrados - e um único vaso sanitário - com outros dirigentes do sindicato (eram treze na maior parte do tempo). Ao longo de 31 dias, ele trapaceou no baralho, discutiu política, virou amigo do Tuma e deixou o xadrez, escoltado por dois delegados, para assistir ao enterro de Dona Lindu, sua mãe.
Os bastidores da greve de 1980 e da prisão do Lula são os temas da minha mais recente matéria, publicada na Revista Época São Paulo de janeiro (nas bancas até esta sexta-feira). São dez páginas ilustradas com fotos históricas e documentos colhidos por mim junto ao acervo do Dops no Arquivo Público do Estado de São Paulo, entre eles a foto do prontuário (reproduzida acima), as digitais do presidente, a capa do inquérito policial e o alvará de soltura. Quem não puder adquirir um exemplar pode ler a versão online da reportagem clicando aqui.


Para fazer a matéria, tive a oportunidade de entrevistar o presidente, numa visita ao gabinete paulistano da Presidência da República (localizado no terceiro andar do prédio do Banco do Brasil da Avenida Paulista). Aproveitei os melhores trechos da entrevista para criar um vídeo, disponível no Youtube, que traz também alguns dos documentos que compõem o prontuário de Lula no Dops e imagens da greve "emprestadas" do documentário Linha de Montagem (1982), gentilmente cedidas por seu diretor, Renato Tapajós.
Olhar essa história pelo retrovisor, observar as conquistas da "classe trabalhadora" e verificar o quanto a democracia brasileira evoluiu de 1980 para cá - possibilitando o fim da ditadura, da inflação e de outros demônios - provoca uma réstia salutar de ufanismo que, mesmo que de maneira tímida, sublinha cada parágrafo da matéria. Trata-se de um período da nossa história que, como tantos outros momentos, precisam ser lembrados para jamais serem repetidos.