segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Sábio esse D. Paulo

"Que morte linda", teria dito o cardeal e arcebispo emérito de São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns ao tomar conhecimento da morte de sua irmã, Zilda Arns, no Haiti. Quem conta a história é Paulo Moreira Leite, em catártico (e saudoso) obituário publicado na edição de ontem da Revista Época. Zilda, treze anos mais jovem do que o irmão, estava desde 1982 à frente da Pastoral da Criança. E assumira o compromisso de criar a entidade, nos estertores do regime militar, por intermédio do mesmo Dom Paulo. Foi ele, afinal, quem sugeriu o nome de Zilda, médica sanitarista e pediatra com atuação no Paraná, ao secretário executivo do Unicef, James Grant, que viera ao Brasil com a missão de convencer o próprio arcebispo a subscrever a empreitada. O cardeal declinou, por falta de tempo e por saber que a tarefa de reverter as taxas de mortalidade infantil registradas no país exigiria dedicação exclusiva, mas indicou ao cargo a melhor pastora que se podia prever. Sua reação à notícia da fatalidade expressa o sincero pensamento de um homem que, imprescindível como poucos, reconhece no amor e na missão os mais belos sinônimos da palavra vida: sem amor e sem missão, a vida é existência errática, música em suspensão, vir-a-ser sublimado em semente inerte.


Dom Paulo vive hoje em uma casa de repouso em Taboão da Serra, município da Grande São Paulo. Aos 88 anos, tem a saúde debilitada, respira com a ajuda de aparelhos, não dá entrevistas e restringe o fluxo de visitantes aos familiares e amigos mais próximos. No entanto, continua lúcido e com a mesma garra do tempo em que desafiava o Vaticano e deixava constantemente a cúria metropolitana para visitar presídios e espernear contra os abusos do regime militar. Denunciou a tortura de presos políticos e trouxe repercussão internacional às denúncias. Celebrou missas em memória de Alexandre Vannucchi Leme (1973) e Vladimir Herzog (1975), os dois maiores eventos de repúdio à ditadura ocorridos na Catedral da Sé, e gravou seu nome no panteão dos defensores dos direitos humanos. Entre 1979 e 1985, esteve à frente do grupo de advogados, jornalistas e ex-presos políticos que listaram os nomes de mais de 400 torturadores, mais de uma centena de mortos ou desaparecidos sob as mãos do Estado, e discorreram em minúcias sobre as técnicas de tortura utilizadas nas catacumbas. Publicado em 1985 com o título Brasil: Nunca Mais, o livro se tornou o mais importante registro dos bastidores dos anos de chumbo. A história deste livro é contada em outro livro, Olho por Olho, que rendeu a Lucas Figueiredo o prêmio Vladimir Herzog de livro-reportagem no ano passado.


Ao lado de Olho por Olho, outro livro publicado em 2009 que ajuda a explicitar o papel libertador desempenhado por Dom Paulo a partir dos anos 1970 é Fé na Luta, da historiadora e cientista política Maria Victoria Benevides. Focado na trajetória da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, um grupo de voluntários arregimentado pelo cardeal em 1971 para atuar na defesa dos direitos humanos em diversas frentes, o livro reconstrói um período de trevas durante o qual apenas um homem da envergadura de Dom Paulo poderia carregar o lampião. Ainda em 2004, colaborei com algumas pesquisas que auxiliaram Maria Victoria na redação do livro, trabalho do qual muito me orgulho.



Esse mesmo Dom Paulo, ainda mais franzino do que antes (irrevogável ação erosiva do tempo), é o nome que encabeça, segundo o jornal Folha de S. Paulo, um abaixo-assinado encaminhado recentemente ao Presidente Lula em apoio ao Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3), o mesmo que vem sendo duramente criticado por setores mais conservadores da Igreja, da mídia e da sociedade civil. Ao lado de nomes como Chico Buarque e Fernando Morais, Dom Paulo estende seu desagravo ao mesmo programa que, na última semana de dezembro, causou espécie nas Forças Armadas em razão da proposta de se cobrar delas um mea culpa - que culmine na confirmação de que o regime militar adotou a tortura como prática oficial de repressão política - e uma resposta conclusiva frente aos apelos encaminhados há 40 anos por familiares de mortos e desaparecidos para que se devolvam os corpos e se confirme o que aconteceu com cada um. Se alguém for até Taboão da Serra e tiver a oportunidade de perguntar a Dom Paulo o que o faz defender com tamanho afinco essa proposta, é possível que seja brindado com uma citação bíblica, do Evangelho de João. "Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará", resumirá o cardeal, a um só tempo sereno e impávido. Sereno e impávido como sempre foi.

Que vida linda, Dom Paulo!

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