quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Mestre Pedro

Hoje tem missa de sétimo dia em homenagem a Pedro Bilatto, meu professor de literatura do terceiro ano. O que se segue é um pequeno texto que escrevi ao saber de sua morte. Fica como um rápido registro da minha admiração e do meu agradecimento.

     Quando o conheci, logo reparei que havia um curativo branco, um esparadrapo infalível a espiar por entre os últimos botões da camisa. Em si, aquele último resquício de infarto significava muito pouco – mas ganhava outra dimensão a cada cigarro acendido, entre uma aula e outra. Para mim, um moleque de 16 anos, o gesto de ainda fumar assumia menos o caráter displicente de quem desobedece o médico e mais a opção pelo prazer comezinho, pela liberdade cotidiana, pela sabedoria imensa de quem descobre o direito de não precisar dar o exemplo sempre – nem ser referência em tudo. Pedro era assim nas aulas, nas conversas de corredor, no trajeto de ônibus de volta para casa. Respostas lacônicas para perguntas insolentes. Ironia e sagacidade. Habilidade ímpar na arte de mostrar aos alunos que, seja qual for o perrengue da vez, há coisas mais importantes na vida com as quais se preocupar.

     Lembro que Pedro havia voltado à universidade e se formado em Direito pouco antes, naquele início dos anos 1990. Em vão: ensinar literatura era mais forte do que qualquer pretensão de advogar. Literatura, quando agarra na gente, é crime que não prescreve. E foi assim, nessa fase pós-Direito e pós-infarto, que tive a oportunidade de conhecê-lo. A mim, ensinou-me a gostar de Machado – o Bruxo do Cosme Velho, como gostava de repetir, adotando o apelido consagrado por Drummond. A mesma ironia, o mesmo ar lacônico e o mesmo olhar de cronista empunhados pelo autor de Dom Casmurro, pronto a esculhambar ritos e convenções, eu encontrava na prosa encantada (e encantadora) do mestre. Provavelmente pela semelhança de estilos, era Machado seu autor preferido, quando o meu continuava a ser Guimarães Rosa.

     Ensinou-me, também, que uma aula dedicada à troca de reminiscências e impressões, à conversa descompromissada, ao papo fugidio, pode ser muito mais educativa do que uma aula repleta de conteúdo, daquela espécie exigida nos vestibulares e prevista nos parâmetros curriculares cimentados em Brasília. Agradeço por ter aprendido isso no momento certo. Pedro, à sua maneira, contribuiu para que eu me tornasse um aluno – e, mais tarde, um jornalista – menos chato. Sem a experiência de ouvi-lo, e de aprender com ele, eu provavelmente não teria, hoje, o mesmo prazer pela escrita e pela leitura. Outros usufruíram da mesma herança. Órfão de filhos, como Brás Cubas, foi a muitos que Pedro transmitiu seu legado – o que só faz aumentar seu saldo ao chegar, sem a celebridade de nenhum emplastro, a “este outro lado do mistério”.

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