quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O resultado do Jabuti segundo o Estadão

É tipo um jogo dos sete erros. Logo cedo, em casa, li a matéria publicada no Estadão sobre a cerimônia de entrega do Prêmio Jabuti de literatura, realizada na véspera, na Sala São Paulo. Estive lá, e acordei curioso para saber o que escreveriam. Fiquei surpreso ao perceber que o veículo simplesmente omitira o nome da grande vencedora da noite na categoria não-ficção. A psicanalista Maria Rita Kehl, autora de O Tempo e o Cão (Boitempo), fora sumariamente alijada da reportagem. Por quê? Em poucos segundo, concluí que a supressão de seu nome teria decorrido do fato de o mesmo jornal ter dispensado a autora, ex-colunista de suas páginas, após a publicação de um artigo no qual Maria Rita defendia o respeito à população menos instruída, constantemente ridicularizada pelos mais "estudados" por votar em Dilma. A coluna teria sido considerada afronta grave ao jornal dos Mesquita, que declarara apoio a Serra meses antes, e a autora não apenas foi dispensada como, ao conquistar o Jabuti, teve seu nome vetado na referida matéria.

Indignado, corri para o Twitter e compartilhei minha indignação. Ao chegar ao trabalho, um amigo veio puxar minha orelha. Deixou sobre minha mesa o mesmo recorte, com quatro linhas grifadas, exatamente para mostrar que eu estava louco: Maria Rita Kehl havia sido, sim, mencionada na reportagem.

Assim é o cotidiano no jornalismo diário. Há a primeira tiragem, a segunda tiragem... Minha indignação permanece. Por algum motivo, o redator optara por escrever sua matéria sem citar Maria Rita, muito embora já soubesse de sua conquista ao fechar a matéria publicada no jornal que recebi em casa, fechado às 23h45 segundo inscrição impressa na primeira página. Mais tarde, por ter sido advertido ou simplesmente por ter se dado conta do absurdo do deslize, fez a alteração e incluiu Maria Rita na edição que chegou às mãos do meu amigo, impressa às 0h30 conforme registro. Menos mal. Pior seria se a primeira versão tivesse vindo com a menção à autora e a segunda, sem. De uma forma ou de outra, parabéns a Maria Rita Kehl pela coerência, pela ousadia, pela qualidade do trabalho que desempenha e pelo livro, que eu ainda não li, mas já aprovei.

domingo, 7 de novembro de 2010

Vá de táxi

A reportagem de capa da mais recente edição de Época SÃO PAULO gerou um burburinho acima da média. Ainda agora, no domingo seguinte à publicação, estamos colhendo os resultados da repercussão em sites, blogs e redes sociais. Não é de hoje que o tema da matéria - o que acontece com seu carro depois que você entrega as chaves a um manobrista - suscita indignação e espanto. O que nossa edição traz de novidade, além do testemunho pessoal e sem censura feito em primeira pessoa pela repórter Nathalia Ziemkiewicz, é a decisão editorial de retratar o cenário quase apocalíptico em que se converteu a noite paulistana com um olhar ao mesmo tempo aguçado e irreverente, jamais acompanhado de dedo em riste e pedantismo (como certas publicações que insistem em querer ensinar, alertar, doutrinar o leitor). Se existe algo de absurdo nas situações apresentadas na reportagem "Cara, cadê meu carro?", quem pode julgar é o leitor. O leitor e os espectadores dos dois vídeos de três minutos e pouco produzidos pela repórter em parceria com os fotógrafos Fernando Donasci e Leandro Moraes, que testaram alguns dos mais disputados serviços de valet parking de São Paulo com uma câmera escondida no veículo.


Juntos, os dois vídeos foram publicados no Youtube na quinta-feira 4. Na mesma tarde, se alastraram pelo Twitter, foram retuitados por Marco Luque, do CQC, para seus mais de 1 milhão e 300 mil seguidores, renderam matéria no Kibeloco e abriram caminho para que, na manhã do dia seguinte, ainda em alta, os vídeos ocupasses os dois primeiros lugares no topo da homepage do próprio Youtube. Ganharam um lugarzinho no Bombou na Web e, no momento em que escrevo, preparam-se para atingir, juntos, 850 mil acessos. Tudo isso em menos de quatro dias.


Para quem ouviu a sugestão de pauta de Rodrigo Pereira, conversou sobre ela com Ricardo Alexandre e ainda se lembra de ter ouvido dúvidas de colegas quanto à conveniência de publicá-la na capa, uma vez que todos nós nos recordávamos de ler matérias semelhantes em outros jornais e revistas, a sensação de  dever cumprido é gratificadora. Imagino que também esteja sendo gratificadora para a Nathalia, a maior responsável pelo sucesso da aventura (sim, reportagens como essa têm um sabor de aventura que só aqueles que dedicam suas vidas a buscar e relatar as melhores histórias são capazes de entender).


Nath é uma das repórteres mais destemidas que eu conheço. Aos 24 anos, magra e de baixa estatura, com uma aparência meiga e de amplo sorriso ao primeiro contato, a moça sobe nos tamancos à busca da notícia e não hesita em trocar o sono por mais algumas horas de apuração quando vislumbra informações fresquinhas no horizonte. Uma palavra antiga e completamente fora de uso é boa para qualificar sua postura no trabalho: azougue. Ao longo de três semanas, ela visitou mais de trinta estabelecimentos comerciais, entre bares, restaurantes e baladas, para testar o atendimento feito pelos manobristas. Procurou advogados e representantes de classe para reunir informações sobre o setor, compilar estatísticas e entender o que as empresas podem e o que elas não podem fazer. Torcíamos juntos. Quando ela me ligava ou mandava um torpedo da rua dizendo que o carro havia sido levado para um estacionamento, lamentávamos, subvertendo o pensamento normal do cliente cuidadoso.
Estranha raça a de jornalistas, sempre querendo desgraça, sangue, confusão! Passei três semanas torcendo para que o carro conduzido pelos manobristas visitados parasse na rua, levasse multa, fosse amassado e até roubado. Ficava imaginando o que os funcionários da empresa diriam ao constatar que o carro, deixado por eles junto ao meio-fio em um local ermo a três quarteirões do estabelecimento comercial, simplesmente desaparecesse. A repórter ficava especialmente irritada quando via dezenas de carro sendo estacionados na rua, e até recebendo multa de uma agente da CET, e na hora de testarmos o nosso carro era estacionado tranquilamente em um estacionamento. Por que diabos tinha que dar errado justamente com a gente? Dar errado, no nosso caso, era cumprir a lei. Dar certo era flagrar uma infração. Estranho, não?


Quando Nath me contou que até no Figueira Rubaiyat o carro ficava na rua, exultei. Caramba, um casal gasta mais de R$ 300 para jantar ali e os caras não têm sequer a decência de guardar num estacionamento? Minha alegria de editor que percebe um grande texto em construção só não foi maior do que na hora em que ela me contou que um manobrista havia jogado o carro sobre a calçada para desviar de outro veículo e danificara uma calota dianteira com a barbeiragem. Pronto, já não tínhamos do que reclamar. A destemida repórter havia conseguido flagrar um belo cardápio de deslizes e incorreções.


Um dos carros usados na reportagem, aliás, é meu. Justamente o que teve a calota danificada. Não vou entrar em detalhes sobre o que mais aconteceu com ele, inclusive com a destemida repórter ao volante. Até o estagiário teve a oportunidade de guiá-lo durante a apuração da matéria. Dia desses, a Nath postou no Facebook alguma coisa como "quantas pessoas não gostariam de ter a chance de usar o carro do chefe". No meu caso, acho que não teve muita graça para ela. Seria melhor se fosse um Audi, um Toyota, ou pelo menos um Honda, diz aí! E certamente seria muito mais legal se o chefe dela fosse mais apegado ao carro, daqueles homens que curtem ler e discutir sobre motores e modelos, e que passam longos minutos todos os domingos encerando a lataria. Para mim, carro é um meio de transporte - e digo isso mesmo correndo o risco de ter de pagar três anos de terapia para meu Corsa.
Em tempo: já coloquei WD na porta do carango. O rangido registrado ao longo do vídeo toda vez que a porta abria ou fechava já estava dando nos meus nervos.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Em Brasília, uma outra perspectiva


Estive em Brasília no feriado. Na agenda do fim de semana, incluí uma deliciosa visita ao Centro Cultural Banco do Brasil, onde está em cartaz uma exposição do artista holandês M. C. Escher (no caso, MC não é "mestre de cerimônia" como se tornou mandatório com o advento do hip hop, mas Maurits Cornelis apenas, embora tenha sido com o sobrenome que o mestre da ilusão de ótica e das construções impossíveis tenha ficado conhecido). Desconfio que muitos da minha geração tiveram a mesma oportunidade de conhecer algumas de suas xilogravuras e litografias, talvez em uma aula de geometria ou mesmo em jovens tardes lisérgicas entre coqueiros ou ipês. A queda d'água que culmina em um impossível caminho ascendente é uma de suas obras mais lembradas.
Parece que a exposição não está prevista para vir a São Paulo, o que é uma pena. Ver de perto cada uma de suas criações é um grande barato. Deu vontade de ter conhecido e mesmo convivido com esse senhor de cavanhaque. O que haveria dentro de sua mente? O que ele se permitiria deixar transparecer?
Antes de deixar o CCBB, assistimos, Aline e eu, a um vídeo em 3D que busca desconstruir seu processo criativo e apresentar cada uma de suas construções da maneira como ela de fato seria se pudéssemos circundá-la de helicóptero. E, evidentemente, não pude deixar de tirar uma foto gaiata, imitando o famoso auto-retrato do mestre holandês. Porque Escher é assim: ele nos inspira gaiatices e irreverências. Nada melhor para voltar ao trabalho renovado.
Na mesma noite daquele domingo, os jornais confirmaram o que eu já imaginava ouvir: Dilma Rousseff foi eleita a primeira presidente do Brasil, a primeira mulher a comandar o país desde que uma princesa de nome Isabel rendeu o pai no governo do império e entrou para a História como a libertadora dos escravos ao assinar a Lei Áurea. A eleição da ex-guerrilheira que jamais havia disputado um cargo eletivo, mas que dedicou uma vida a cargos técnicos da administração pública diz muito do que se espera dos próximos quatro anos. Menos bravatas e menos teatro, na comparação com o eterno protagonista Luiz Inácio Lula da Silva, e mais resultados.
A eleição de Dilma vem recheada de simbologias. É a primeira mulher, como destacado em todos os jornais, mas uma mulher mais durona do que muitos homens e menos afeita a vaidades femininas do que o usual. É também a primeira representante da geração da resistência, que flertou com o marxismo e pegou em armas para combater a cassação das liberdades individuais promovidas por um regime militar sanguinário a partir do final dos anos 1960. É, no retrovisor, uma pessoa com mais estudo e mais habilidade em tomar decisões do que seu antecessor no cargo, o que pode ser um alívio para aqueles que, como eu, costumam se irritar quando o jogo de cena supera a ação e a "encheção de linguiça" vira expediente estrutural na condução de políticas públicas e na investigação de corrupção. Sem o carisma de Lula nem o partido nas mãos, Dilma Russeff terá inevitavelmente de assumir uma postura mais diplomática e humilde, muito embora tenha a seu favor um sentido de soberania que parece trazer desde o berço e, ainda mais relevante, uma inédita maioria no Congresso, que não deverá ser desperdiçada.
O que tudo isso tem a ver com Escher? Eu diria, correndo o risco de forçar a amizade, que ele nos ensina a olhar o mundo com outros olhos, a questionar o tempo todo o que aparece à nossa frente, a duvidar do que se pinta no papel e de todos os elementos empregados pelas instituições clássicas para nos acondicionar a uma única visão das coisas. Também a eleição de Dilma me parece um lampejo de nova perspectiva. E eu torço por ela.