quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Hurricane City

"I showed my tits in New Orleans". A frase, escrita em uma camiseta pendurada na vitrine de uma loja de souvenirs, não significava nada para mim. Não até eu fazer meu primeiro passeio noturno pela Bourbon Street. Da ampla sacada do hotel Sonesta, duas dezenas de rapazes debruçados sobre o beiral provocavam as garotas que passavam pela rua a exibir seus dotes. Quem topava a parada recebia como prenda um colar de contas, às vezes mais de um, atirado lá de cima pelos machos exaltados que, digamos assim, sentiam-se contemplados com o espetáculo. Logo uma cambada estrategicamente posicionada empunhava suas câmeras em direção às presas encurraladas (e invariavelmente sorridentes). I did the same.


A brincadeira ganha estímulos nos 30 graus da Lousianna, onde nem a noite arrefece o verão precaribenho. A brincadeira é democrática. Vi senhoras obesas, muito obesas, levantarem a camiseta e seguirem lépidas com seus colares. Outra passou de cadeira de rodas e precisou de ajuda para recolher os colares que cobriram o chão ao seu redor. Uma jovem beldade, de cabelos loiros e nariz arrebitado, não ficou satisfeita ao ganhar quatro colares e voltou a mostrar as "tits", dessa vez para a extremidade oposta da sacada, a fim de arrebatar mais dois ou três presentinhos. A moça na foto abaixo, a mais desenvolta de todas, custou a prender novamente o biquini, com tantos admiradores por perto.


O leitor dirá que, com essa roupa, a jovem acima só podia estar querendo ficar pelada. Eu explico: ela é hostess em um cabaré, uma das muitas casas de strip instaladas na Bourbon St. Como hostess, não tinha nada de perambular pela rua e abrir o biquini. Mas aposto uma jambalaia com quem duvidar que o gesto bastou para que ao menos um par de clientes fosse atraído para sua toca. Ah, esses inferninhos...


Contei umas dez casas do ramo em 600 metros de rua. Algumas mais clássicas, com um rapaz de terno posando de leão-de-chácara e uma ou duas garotas de corpo escultural fazendo as vezes de isca junto à entrada. Negras ou loiras, em sua maioria, para atender aos desejos mais pungentes dos turistas, sejam eles escandinavos ou sulamericanos.


Outras vezes, vale uma dancinha, um rebolado, um arremedo de poledance como canja, aperitivo.


As casas mais criativas investem em cenografia e chegam a colocar um balanço junto a uma janela, de frente para a calçada, onde a prata da casa se alterna em vai-vens convidativos. "Tá me esperando na janela, ai, ai / não sei se vou me segurar..."


As minhas preferidas, no entanto, são aquelas que anunciam "no cover", a ausência de couvert, desde o meio-fio. Melhor ainda quando uma gatinha cumpre o papel de homem-placa, distribuindo sorrisos entre cartazes luminosos de capas de revista e promessas de sexo explícito.


Esse erotismo tem tudo a ver com essa cidade portuária, de maioria negra e alto sincretismo religioso, onde a boa música popular americana se forjou e continua em construção. A mim, lembrou Salvador, com sua culinária peculiar, normalmente apimentada, sua forte tradição católica combinada à resistência do candomblé (aqui é o voodoo que sobrevive ao cristianismo batista), e a cena musical insuperável, em efervescência e em história.


A Bourbon St é o epicentro de tudo isso. Um bar colado em outro, quase todos com música ao vivo. Jazz (do dixieland ao cool), blues, country, rock e pop. Na maioria deles, basta comprar uma bebida.


Escutei muita coisa boa nos últimos dias. Um show de Jamil Sharif (acima), outro de Irving Mayfield, uma apresentação de um tradicionalíssimo conjunto de metais de New Orleans em um imperdível centro de cultura chamado Preservation Hall (abaixo).


Ali, o jazz também se espalha pelas ruas.


Nas esquinas, nos cafés e nos pontos de ônibus, varando madrugadas.


O ponto alto dessa imersão no jazz foi ter a oportunidade de conferir, na primeira mesa de uma aconchegante casa para shows intimistas chamada Snug Harbor, uma apresentação do mestre Ellis Marsalis, pianista septagenário conhecido como o primeiro patriarca do jazz por ter introduzido os quatro filhos na atividade, dos quais o mais conhecido é Wynton Marsalis. A apresentação em si, em um trio instrumental complementado por um baterista e um contrabaixista, já era de cair o queixo. Lá pelas tantas, sobe ao palco uma cantora excepcional, negra, jovem e radiante, com voz provavelmente curada em corais de igreja, e põe-se a cantar Desafinado, arriscando um português de imitação. Uma execução primorosa. Fiquei triste de as regras da casa não permitirem a produção de fotos. Terminada a canção, mundialmente conhecida na interpretação primorosa de João Gilberto, o grupo emenda um Águas de Março, dessa vez com letra em inglês. No final, mandei um "muito bom" da minha cadeira. A cantora arregalou os olhos, percebeu a presença de uma família de brasileiros a um metro de distância e sorriu encabulada. "Oh, no!" Sua benção, Tom Jobim.


New Orleans ainda se esforça para superar o baque do furacão Katrina, que inundou a cidade no início da década, e agora convive com outra calamidade, provocada por vazamentos de petróleo em sua costa. É uma cidade de gente corajosa, de fibra. Gente arretada que não se apoquenta com pouco.


Hurricane City (Cidade do Furacão) já virou apelido, visível em roupas, placas e lembrancinhas. Hurricane é também o nome de um coquetel servido em muitas casas, e até em barraquinhas nas ruas, como se fosse um capeta de Porto Seguro. Infelizmente, só agora me dou conta, deixei a cidade sem prová-lo, entusiasmado que estava com o baixo preço da Guiness e as convenientes doses de Jack Daniel's. Fica para a próxima, quando também lembrarei de montar meu estoque de colares de contas.

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