Hoje recebi a notícia de que a Revista Época São Paulo acabou. O comunicado oficial diz que ela voltará a
circular eventualmente, em datas especiais, no ano que vem. Fato é que a equipe
foi inteiramente desarticulada, com mais de uma dezena de demissões.
Trabalhei
por cinco anos na redação de Época São
Paulo, entre janeiro de 2008 e dezembro de 2012. Fui repórter e editor, durante
períodos equivalentes. Aprendi muito nessa temporada e posso dizer que curti
cada apuração realizada e cada fechamento, dos mais divertidos aos mais desesperadores.
Nessa semana, completei um ano fora da revista — e registrei há exatos dois
dias a saudade que sinto da velha casa num post no Facebook.
Atribuo
essa saudade basicamente a três fatores. O primeiro deles é a oportunidade de
fazer parte de uma equipe fundadora. Pisei pela primeira vez no sexto andar do
prédio quatro meses antes de ver a primeira edição chegar às bancas. Foram
quatro meses de expectativa e muito trabalho. Medo e delírio no Jaguaré. Só
quem teve, como eu, a experiência de presenciar o nascimento de um título, seja
como diretor ou como estagiário, sabe a dor e a delícia de ver um projeto tomar
forma, inventar seções, inaugurar conceitos, sintetizar ideias.
Também
devo muito da minha saudade às aventuras da reportagem. Não me lembro de ter
gastado a sola de nenhum sapato, como os antigos costumavam dizer, não a ponto
de enxergar furos ou sentir o calor do asfalto atravessar a borracha. Mas
gastei muita caneta bic, a ponto de esfregar o refil de tinta com as mãos para
tentar extrair dele mais algumas anotações no bloquinho antes de ser obrigado a
sair em busca de uma caneta substituta. Gastei, também, muito olhar, muito
olfato, muita audição, um volume razoável de lábia e um bom conjunto de análise
nesse período. Rodei a cidade e fui rodado por ela.
Colecionei
histórias como quem costura vidas. Um rali nas obras do Rodoanel, a triste sina
do operário que morreu na construção da ponte estaiada, o drama das transexuais
na fila da cirurgia, as falcatruas que permitiram a inauguração do estádio do
Morumbi. Aprendi um bocado sobre tatuagens e marketing político, transplante de
medula e subprefeituras, slam e Adoniran Barbosa. Morei num apartamento no
Centro para ver de perto a tal da "revitalização", me apaixonei pelas
memórias da Cinelândia paulistana, percorri o trajeto feito pelo lixo desde
nossas casas até os aterros sanitários e usinas de reciclagem. Fui numa balada
sobre rodas, passei de barco no Tietê e dormi a última noite do hotel Ca D'Oro.
Entrevistei o Lula, proseei com Frei Betto, troquei figurinhas com Renato
Janine Ribeiro e farpas com o Coronel Álvaro Camilo, perfilei o Paulo Hoff. Dei risada com o Maluf.
Finalmente,
o terceiro motivo para a saudade é, provavelmente, aquele que mais nos define e
inspira, seduz e estimula, motiva e conforta: o elemento gente. Foram tantos
caminhos que se cruzaram ali, parcerias construídas, amizades reveladas, trocas
inestimáveis de experiência e carinho. Muitas crises e algumas vitórias.
Porres. Paixões (tem casal que surgiu na redação e continua firme até hoje).
Houve quem partisse para sempre. Há os que não partirão jamais. Arte do
encontro. "Somos do tecido de que são feitos os sonhos", escreveu
Shakespeare. "O tempo é a substância de que sou feito", rebateu Jorge
Luis Borges. Época São Paulo foi isso: tempo e sonho, simultaneamente.
Hoje,
preparo uma dissertação de mestrado sobre revistas de cidade, na qual Época São Paulo deverá desempenhar um
papel primordial, quiçá o principal, em razão do meu envolvimento com ela e meu
conhecimento sobre os meandros de sua trajetória. Ao deixar a revista, em 2012,
eu era o último remanescente da equipe fundadora, o que faz de mim seu membro
mais longevo, o único que, sobrevivendo aos três diretores que a revista teve,
testemunhara o rodízio de todos os profissionais, em todos os postos. Mas a
ideia, ao abordar a Época São Paulo como exemplo de erros e acertos, e
principalmente de proposições para o futuro, sempre foi me debruçar sobre uma
revista atual, contemporânea, e não sobre um título extinto, um ex-título, que
já não há. Escapa-me, de certa forma, o objeto: liquefez-se, como Bauman. E
folheio editoriais como se, assim, cumprisse o ritual milenar de "beber o
defunto".
"A
revista que São Paulo merece", sintetizou Paulo Nogueira, então diretor
editorial da Editora Globo, na carta ao leitor publicada na primeira edição.
"Desde seu lançamento, Época São
Paulo apontou um novo caminho para o jornalismo de cidades no Brasil. Nada
de subestimar o leitor", escreveu Alexandre Maron, o primeiro diretor da
publicação, no editorial do número 6. E acrescentava, no mesmo parágrafo, antes
de anunciar que aquela seria sua última edição à frente do título: "Oferecemos
uma revista linda, com reportagens mais longas e profundas, para quem gosta de
ler. Nosso roteiro é visualmente impressionante e valoriza toda a experiência
do jantar ou da diversão com amigos e família. Na esteira dessa qualidade, nos
tornamos um enorme sucesso comercial. Tenho orgulho das conquistas desta
equipe."
Seu
sucessor foi Ricardo Alexandre, que disse o seguinte no editorial da 12ª edição:
"Muito se discute sobre o futuro das revistas, especialmente desde que a
internet chegou, virando tudo de cabeça para baixo. Mas parece consenso que o
caminho para as revistas de papel é fugir da briga direta com o universo
on-line. A internet tem a rapidez, a agilidade, a multimídia, a interação. O
papel tem a profundidade, o charme, a autoridade. Nós, de Época São Paulo, queremos ter o melhor dos dois mundos."
Os
militantes de Época São Paulo percorreram
esse objetivo por 67 edições. No editorial da última edição, sem saber da
iminência do desfecho, o diretor Celso Masson citou uma enquete feita no site
da revista com a pergunta "O que você gostaria de ganhar neste
Natal?". Se a campeã entre as respostas foi uma viagem à Europa, o segundo
lugar foi conquistado por uma alternativa inusitada: um abraço. "A grande
surpresa foi constatar que 14% dos que responderam à enquete gostariam de
ganhar um abraço", escreveu ele. "Símbolo de carinho, acolhimento e
afeição, o abraço desejado pelos internautas pode ser entendido como uma
declaração de paz num ano marcado por ondas de violência de um tipo inédito na
cidade". Logo adiante, no parágrafo seguinte, profetiza o canto do cisne: "Talvez
a opção pelo abraço seja, ainda, a esperança de que dias melhores virão. Tomara
que venham mesmo."
Aos
mais de 50 profissionais que fizeram Época
São Paulo e conviveram comigo nos corredores da revista a longo dos cinco
anos em que estive lá, deixo também meu abraço. E faço coro com os votos de Celso
Masson. Tomara.
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