Gostava
mesmo era de ler fotografias. Não que lhe faltasse letramento para contos ou
romances. Ao contrário, percorrera todo um universo literário – épicos, poemas e
tratados – antes de aprender a passear pelas tramas tecidas com imagens. Hoje, lia
apenas eventualmente os livros de história, esses volumes maçantes, cheios de
palavras, nos quais tudo o que interessa já está posto. Ora, que falta de graça
não deixar espaço para que o leitor crie também suas histórias.
Talvez
por isso gostasse tanto dos livros de fotografia. Neles, cada página é um
portal, uma janela aberta para um mundo de sensações. Quem lê fotografias
preenche essas janelas como bem entende.
Uma
imagem sugere um thriller de suspense.
Outra, logo adiante, uma paixão incendiária. Algumas imagens têm o dom dos
grandes oráculos: foram construídas para que os passantes a cobrissem de
perguntas. Muitas delas continuam sem respostas. Há também as
fotografias-denúncia, que parecem ter sido plantadas pelo Ministério Público
para suscitar protestos e indignação. Fome, miséria, desmatamento, violência.
Nosso
leitor de fotografias era fascinado por todos os gêneros. Até as paisagens o
atraíam, nos catálogos visuais que proliferam em cidades turísticas e santuários
ecológicos.
Teve
uma época em que ele passou a escolher médicos e dentistas em razão dos livros
de fotografia que encontrava na ante-sala. Irritado com o longo tempo de espera
a que era submetido, descobriu nos livros de fotografia o melhor remédio para curar
a ansiedade. Alguns pacientes, em iguais condições, se agarram a seus telefones,
enquanto outros recorrem às revistas de celebridades. Ele lia fotografias. E as
lia com tamanho arrebatamento que, eventualmente, hesitava em adentrar o
consultório ao ouvir seu nome.
A
vantagem, ele dizia, era que esse tipo de leitura dispensava a conclusão de uma
ideia, um capítulo ou um parágrafo. No máximo, quando não desse para explorar
todas as possibilidades da imagem, voltaria a ela na consulta seguinte. Sim,
porque havia ocasiões em que ele se debruçava sobre uma única imagem até ser
atendido.
Façamos
as contas. Em quanto tempo você lê uma página de romance? Dois minutos? Cinco? E
uma foto? As páginas dos livros de fotografia não têm um tempo definido de leitura.
É possível folhear rapidamente, passando de uma foto para outra com agilidade
de videoclipe. Ou se deter longos minutos em cada página, extraindo cada gole
como numa degustação. Uma vez, ele ficou exatos 38 minutos observando uma única
foto à espera do oftalmologista. E seria capaz de dedicar ainda mais tempo a
ela, porque alguns detalhes não tinham sido investigados como deveriam. Acabou
comprando o mesmo livro no dia seguinte.
Outra
coisa que o fascinava nos livros de fotografia era seu potencial decorativo.
Bobagem colocar todos eles em prateleiras. Na sua casa, alguns ficavam na mesinha
de centro, outros no aparador; e havia ainda uns dois ou três que, em rodízio,
viviam no criado-mudo: eram suas fotos de cabeceira.
Os
livros de fotografia combinam arte e reportagem e, por isso, atiçam dois
sentimentos que nos são muito caros: o fascínio pelo belo e a sede de novidades.
Pessoas, bichos, prédios, barreiras de corais ou refugiados árabes, tudo se
transforma em informação sedutora, emoldurada como óleo sobre tela. E nos
remetem, esses livros, a cenários ou pessoas que já conhecemos ou às quais
acabamos de ser apresentados, no momento em que viramos a página.
É
o que acontece quando observamos os retratos de Bob Sousa. Quem está ali? Se
não sabemos quem é, inventamos na mesma hora uma história para ela. Por outro
lado, se for um artista conhecido, uma figura notória, rapidamente viajamos ao
passado.
Um
retrato de Zé Celso talvez nos faça lembrar de uma encenação das Bacantes, ou
de Cacilda, ou dos Sertões, não importa. Os mais velhos poderão se ver
novamente diante de uma cena da peça Roda Viva, por que não?
É
Macunaíma que escapa do olhar de Antunes? Ou Medéia, a Pedra do Reino, uma das várias
edições de Prêt-à-porter?
Maria
Alice Vergueiro encarna A Velha Dama Indigna no tablado ou arrebata multidões
digitais com seu Tapa na Pantera?
Como
disfarçar o sorriso diante do rei Ubu revelado na foto de Cacá?
Em
mais de uma década de atividade, centenas de profissionais ligados ao teatro posaram
para as objetivas de Bob. Objetivas totalmente subjetivas, é bom que se diga.
Atores
e atrizes, autores e diretores, críticos e produtores, centenas de artistas talentosos
foram perpetuados em imagens igualmente talentosas e afetivas. Ao longo dos
anos, o fotógrafo foi ajustando o foco, afinando o diafragma, até se tornar o
que é, o velho Bob, um cara que um dia quis fazer teatro e acabou feito por
ele.
Os
retratos de Bob, reunidos e encadernados pela primeira vez, farão o aficionado
por livros de fotografia dedicar muitos minutos a cada imagem. Diante dele
estará não apenas uma foto, mas um palco, um camarim, uma coxia. E esses locais
são, como a fotografia, espaços de transmutação, transfiguração e tele-transporte:
portais fascinantes que nos permitem trafegar por outros cenários, percorrer outras
dimensões. Visitar, enfim, todos os mundos do mundo.
–––
* Este texto foi escrito em outubro de 2013 para ser lido por Danilo Grangheia no teaser produzido por Laerte Késsimos por ocasião do lançamento do livro "Retratos do teatro", de Bob Sousa, em novembro do mesmo ano. O vídeo pode ser visto no YouTube.
** Com 164 fotos que retratam 169 personalidades que "carregam o piano" do teatro paulista, entre atrizes, atores, diretores, produtores, autores e críticos, o livro de Bob Sousa foi editado por mim e publicado pela Editora Unesp. No site da editora é possível baixar gratuitamente a versão digital.
*** Notei que esse post quebrou um tabu de mais de um ano sem publicar no blog. Que horror. Que vergonha. Que vexame. "Mas isso significa que você voltou à ativa por aqui, não é?", poderia perguntar o leitor mais entusiasmado (ou temeroso). Não. Ainda é cedo para comemoração (ou luto). Não prometo nada. Não prometo nada.
*** Notei que esse post quebrou um tabu de mais de um ano sem publicar no blog. Que horror. Que vergonha. Que vexame. "Mas isso significa que você voltou à ativa por aqui, não é?", poderia perguntar o leitor mais entusiasmado (ou temeroso). Não. Ainda é cedo para comemoração (ou luto). Não prometo nada. Não prometo nada.
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