sexta-feira, 30 de abril de 2010

Demônios!

Um mês atrás, publiquei na Época São Paulo uma reportagem sobre a música "Trem das Onze", composta por Adoniran Barbosa e gravada pela primeira vez, em 1964, pelos Demônios da Garoa. Duas semanas depois, a DPZ, agência de publicidade que cuida da conta da revista, procurou o grupo com a proposta de contratá-los para gravar a música da nova campanha da revista. O resultado já está no ar, num vídeo divertidíssimo que percorre alguns dos cartões postais da cidade com irreverência e inteligência. Confiram:


domingo, 25 de abril de 2010

Fui "rapelado"

É difícil acreditar no efeito de um álbum de figurinhas na vida das pessoas - mesmo quando o álbum em questão traz mais de 600 jogadores que, em sua maioria, disputarão a Copa da África do Sul a partir de 11 de junho (em retratos quase sempre mal tirados, diga-se, e com um design pavoroso). Ao ler, na semana passada, sobre o roubo de 135 mil figurinhas em Santo André (SP), tive a certeza de que estamos diante de um fenômeno sobre o qual deveriam se debruçar, com urgência, psicólogos, sociólogos, antropólogos e, quero crer, a Receita Federal. Uma febre como esta, afinal, só pode ser lavagem de dinheiro disfarçada de hobby.

Recentemente, recebi um álbum da Fifa com meu exemplar do Estadão. Levei para a redação a fim de guardar a tabela dos jogos, publicada em uma das páginas: poderia ser útil no futuro. Lá chegando, deparei-me com um colega que acabava de percorrer o andar todo, vasculhando mesas alheias, pilhas de jornais do fim de semana e cestos de lixo reciclável à busca de um álbum perdido, esquecido, devoluto. No Facebook, na mesma tarde, ele postou que eu "salvei" seu dia. Dias depois, soube que ele comprara 50 envelopes de uma só tacada (embora não haja tacadas no futebol). Resultado: desconfio que sua mulher esteja até agora com vontade de me matar.

Outro amigo, na mesma semana, tentou explicar a paixão pelas figurinhas como um desejo súbito de voltar à infância por alguns minutos (ou meses). Sei bem a que ele se refere. Quando sinto este tipo de impulso, costumo fazer coisas ainda mais sinistras, como experimentar caretas em frente ao espelho ou encarar maratonas inteiras de Chaves. Quanto às figurinhas, misturam-se aí duas perversões: o desejo de retornar à infância e a obsessão por colecionar coisas. Nunca li nada sobre isso, confesso, mas desconfio que haja alguma explicação genética para o hábito das coleções. Eu, por exemplo, já colecionei muita figurinha num passado remoto (era doido por meu álbum da Copa de 90, aquele fracasso vergonhoso na Itália). Hoje, coleciono sapos. Sim, sapos, nos mais diversos estilos e tamanhos, incluindo canecas, imãs de geladeira e peso para papel. Avesso a boleiros, no entanto, estou longe de ser um dos 150 mil brasileiros que, segundo reportagem publicada na Revista Época desta semana, integram uma comunidade do Orkut dedicada à troca das repetidas.

Foto de Rogério Cassimiro publicada na Época

Agora, no universo das figurinhas, o mais divertido, na minha opinião, sempre foi disputá-las (literalmente a tapa), e não trocá-las. Por isso me surpreendo com a curiosa relação que a turma de hoje tem com suas coleções. Ainda não vi, pelo menos até agora, nenhum dos meus amigos "batendo bafo" por aí. Bafo, manja? Trocar figurinha, quando eu era moleque, era coisa de maricas. Nós, os machões da terceira série, se estivéssemos realmente dispostos a completar nossos álbuns, tínhamos o dever cívico e moral de conquistar as mais difíceis no jogo.

As batalhas eram travadas maioritariamente no chão do pátio da escola durante o intervalo. Ali, entravam figurinhas de tudo quanto era álbum: Impactus, Comandos em Ação, figurinhas de carros ou de skate. Só não aceitávamos meiguices como Moranguinho e Amar é... (por motivos óbvios). As regras variavam conforme a tradição oral adotada no colégio: leis consuetudinárias forjadas entre um recreio e outro. Em alguns, era permitido usar duas mãos (em uma concha capaz de entornar cinco ou seis cartas num único golpe). Outras vezes, valia "selar", o que, em bom português, significava dar uma lambida na palma da mão para favorecer a decolagem da figura.

Tive um trauma, naquele mesma terceira série, quando um cara dois anos mais velho me desafiou no bafo. Eu era bom entre os meus, garanto, e, naquele dia, chamei a atenção dos gigantes da quinta série por ter "rapelado" minha turma. Rapelar, no caso, era faturar todas as figurinhas da galera, passar o rodo, liquidar a fatura. Eu havia, naquela ensolarada manhã, me apropriado de dezenas de figurinhas do pessoal da minha classe. Desfilava orgulhoso e altaneiro com um montinho de pequenos troféus amarrados com um elástico quando esse cara me intimou. Topei, é claro, apesar de saber que havia uma porção de figurinhas "carimbadas" naquele monte, convencido pelos dois palmos de altura que ele tinha a mais do que eu - e sem imaginar que sua retórica e sua habilidade em argumentar me fariam aceitar, instantes depois, sua condição: "a gente só vai parar quando um de nós tiver perdido todas as figurinhas". De tão cretino, entrei no duelo com 50 ou 60 figurinhas, enquanto ele não tinha mais de dez. É claro que, meia hora depois, fiquei com as mãos vazias. Fui "rapelado". Tinha nove anos na ocasião.

Voltei para casa com um bico enorme, decidido a nunca mais jogar com homens mais velhos. E, se fosse para entrar num duelo daqueles, em que a partida só termina com a morte do adversário, jamais entraria com mais cartas do que o adversário. O para-efeito do meu fracasso foi que meu desempenho nas provas de matemática melhorou consideravelmente depois daquele episódio. Agora, os riscos de cada aposta eram calculados com a gravidade exigida de um gambler da Las Vegas. E tino de investidor.

Será que eu saberia bater bafo ainda hoje?

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Brasília é uma ilha (eu falo porque eu sei)

No cinquentenário da "Novacap", vasculhei meus álbuns de fotografia e encontrei os quatro registros abaixo, entre muitos outros, feitos em dezembro de 1998.

Na ocasião, Brasília era uma jovem de 38 anos, mas já apresentava muitas das marcas de expressão que exibe hoje, aos 50.

O fotógrafo era um rapaz de 19, estudante de jornalismo e aficionado por fotografia, disposto a percorrer o Brasil com uma Pentax K-1000 a tiracolo e o melhor amigo como parceiro de viagem.

O fotógrafo gostou da cidade, apesar de sentir falta das esquinas e dos arranhacéus. E virou fã de Niemeyer, apesar do desconforto causado por prédios amplos e frios, subterrâneos inóspitos e uma opressiva arquitetura monumental.

As fotos, agora digitalizadas, servem para prestar minha homenagem ao sonho de JK. E minha esperança de que a cidade voltará a ser sonho, para além do pesadelo.

Espontânea

Gilberto Gil cantou, na música "REP", o seguinte refrão:
O povo sabe o que quer
mas o povo também quer o que não sabe.
Nunca antes na história deste país a frase fez tanto sentido.
Basta observar com alguma atenção o resultado da mais recente pesquisa de intenção de voto feita pelo Datafolha e publicada no sábado, dia 17.

Se oriente, rapaz - alertou o mesmo ex-ministro em outra canção.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Menas é mais


Esta foto eu tirei no sábado. Ela ficou meia sem foco por causa que a gente estávamos sem a máquina e eu tive que se virar com o celular mesmo. Valhe muito à pena ir no Museu da Língua Portuguesa e vizitar a esposição sobre os erros de hortografia e gramática. Tem pouca coisa, na verdade, e quem chegar cedo certamente vai terminar de ver tudo antes do meio-dia e meio. Estejem preparados pra ficar fora de si. E, talvez, aprender alguma coisa.

domingo, 18 de abril de 2010

A viola do Ivan

São dez cordas, apenas. Dez cordas que entrelaçam o mundo. Da mesma forma que aprendemos a contar e a escrever qualquer número com apenas dez algarismos, bastam dez cordas para se arrancar de dentro de um bojo o vasto universo de sons e sentidos que habita a bela viola. Cinco pares, somente. Cinco duplas caipiras, emparelhadas lado a lado, que se completam e ampliam feito vozes terçadas. Primas, requintas, turina e contraturina, toeira e contratoeira, canotilho e contracanotilho. Violeiro é regente de coro, maestro a conduzir dez cordas canoras e a distribui-las em naipes como melhor lhe condiz. Por vezes, são dez solistas a esbanjar disciplina e audácia. Contraltos. Sopranos. Tenores. Barítonos. Ivan Vilela é um desses regentes: artesão a manipular fios de aço em melódica alquimia.


Enquanto escrevo, ouço seu mais novo CD, Do Corpo à Raiz, lançado há pouco pelo selo Kalamata: admirável iniciativa do amigo Antoine, que assumiu para si a missão de polvilhar o mercado fonográfico com ótimos registros de música instrumental brasileira. Em 13 faixas, Ivan apresenta músicas compostas por ele para um balé da Cia. Experimental Dança Vida, coordenada por Paula Vital. Sua viola é aqui acompanhada pela viola de arco de Paula Ferrão - que também adiciona violino e rabeca à confort food do álbum -, pela percussão de Cleber Almeida, o contrabaixo de Gilberto Syllos, o violão e a voz de Zé Esmerindo, o coral Madrigal in Casa e a outra viola caipira de Anderson Baptista, aluno de Ivan.


Desde 1998, Ivan não lançava um disco com composições próprias e inéditas. Seu álbum anterior havia sido o Dez Cordas (2007), inteiramente dedicado a arranjos feitos por ele para músicas de Chico Buarque, Tião Carreiro e até George Harrison, entre outros. Antes de Dez Cordas vieram Caipira (2005), um disco de clássicos da música sertaneja no qual sua viola se soma às vozes de Suzana Salles e Lenine Santos, e Quatro Estórias (2002), um "áudio-livro" com textos para crianças de autoria de Rubem Alves. Apesar da intensa produção, eu estava com saudade das peças instrumentais de sua autoria. Do Corpo à Raiz me deixou mais calmo, espécie de ansiolítico consumido com voracidade.
Em comparação com Paisagens (o disco de 1998), este me parece um pouco mais intimista, talvez meditativo. Se as composições de Paisagens nos remetiam facilmente à janela do carro, a maioria das faixas de Do Corpo... nos faz olhar para dentro. De certa maneira, é como se Ivan acertasse duas vezes nos títulos escolhidos. De resto, a novidade dialoga com o primeiro CD. Se, em Paisagens, Ivan arremedou um cururu, mostrou uma catira e apresentou o pagode-de-viola ao leigo, agora ele ataca de festa junina e arremata o trabalho com uma bandeira do divino. Há também um acalanto na música "Menino". Ivan ainda ousa citar a si mesmo, introduzindo na faixa "Catiras" uma sequência harmônica que me parece emprestada de "Pra Matar a Saudade de Minas", composição que abria, em 1998, seu disco de estreia. Em "Fogo" e em "Mistério", provavelmente as faixas de que mais gosto, o que ouvimos é a epifania resultante de um sertão a um só tempo rude e sensível. Como num verso de Rosa ou num compasso armorial, é possível escutar a seca, perceber o cheiro de feijão que emana do fogão a lenha, vislumbrar bezerros esquálidos a caminho do "córgo" (mera hipótese de riacho). Ou, simplesmente, sentar num degrau do alpendre para esperar, enternecido, o próximo disco de Ivan. Que ele venha sem pressa.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Tempo tempo tempo tempo

Agora é oficial:

Tirei a imobilização do dedo do pé.
E devolvi a aliança ao dedo da mão.

Pé consertado, com "s".
Amor concertado, com "c".

Isso significa que voltei a andar depressa.
E com passos mais firmes.
Para o rumo certo.


Música de hoje: "Oração ao Tempo"
"Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo tempo tempo tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo tempo tempo tempo..."

terça-feira, 13 de abril de 2010

Psicografando esperança

Fui assistir à cinebiografia do Chico Xavier. Já pro finalzinho do filme, na cena em que o personagem de Toni Ramos chega em casa depois do trabalho, as comportas cederam e um catártico sumidouro, surgido sabe-se lá de onde, me fez imergir em lágrimas e caretas. Foi uma espécie de recorde nos meus trinta anos de público: pela primeira vez, chorei em dois filmes em um intervalo inferior a dois meses. Deve ser o climatério, pensei, segundos antes de lembrar que homem não vive essas experiências, muito menos aos trinta anos. Ninho vazio, foi a segunda hipótese que apresentei a mim mesmo, embora ainda não tenha filhos, menos ainda em idade de sair de casa.


O filme é bom. Uma espécie de poderosa revelação para leigos como eu - que pouco sabia da vida do médium e nunca estudei a fundo os meandros da psicografia e das incorporações. Devia tê-lo feito mais cedo. E, para ser sincero, oportunidades não me faltaram. Meu avô era espírita, um irmão caridoso que ajudou a fundar um centro em sua cidade e que, presidente de mesa, dedicava duas ou três noites por semana às atividades do local: grupos de estudos, passes, seções, "trabalhos". Por mais de cinco anos, conciliou o expediente como fotógrafo (era dele o único estúdio da cidade, onde toda a população ia tirar retratos para documentos, revelar negativos e contratar seus serviços para batizados e casamentos) com a função de supervisionar as obras de um orfanato construído e mantido pelo centro, acho que até hoje. Infelizmente, meu avô morreu em 1999 sem que tivéssemos conversado de homem para homem sobre o assunto. Culpa minha, que nunca fiz as perguntas certas. Curiosamente, eu havia me matriculado em um curso de fotografia um ano antes de ele morrer e, meses depois, faria minha primeira exposição. Ele já não estava aqui para conferir minhas fotos e, como em relação ao espiritismo, jamais tive ocasião de bater um bom papo sobre fotografia com ele.


Voltando ao assunto do post, o que me emocionou no filme não foi a infância dura do menino Chico, a ausência da mãe ou as espetadas de garfo que levava da madrasta. Tampouco a desconfiança do pai e as injustiças cometidas por uma sociedade avessa a "bruxarias". O que me emocionou foi descobrir, ali, as proporções que uma breve mensagem pode assumir. É incrível o efeito provocado por palavras sopradas por espíritos quando atingem os ouvidos de seus pais, esposas e maridos. Quatro ou cinco linhas, às vezes, mesmo que tenham sido rabiscadas às pressas pelo médium, transformam-se no mais acolhedor dos abraços quando lidas pelo destinatário. O que toca, em Chico, não é a intensidade de seu sofrimento, mas a extensão da esperança e do conforto que ele soube transmitir a milhões de brasileiros.
Eu estive em seu velório e pude conferir seu enterro. Em junho de 2002, era repórter da ISTOÉ e fui escalado para viajar a Uberaba a fim de cobrir a comoção nacional provocada pela sua morte, justamente no dia em que, no Japão, a seleção brasileira comemorava a conquista do pentacampeonato. Cerca de 100 mil pessoas foram se despedir do mais famoso médium do mundo, que psicografou nada menos do que 418 livros em 92 anos de vida. Após dois dias em Uberaba, voltei a São Paulo com a matéria de capa. E a sensação de que, com ela, homenageava de alguma forma meu querido avô.


O filme me fez lembrar essas experiências todas. Ao voltar pra casa, corri para o fichário onde guardo as quase 300 matérias que publiquei em sete anos de ISTOÉ para reler o que havia escrito na ocasião, oito anos atrás. O primeiro parágrafo segue abaixo. Quem quiser ter acesso à íntegra do texto, clique aqui. E quem quiser assistir ao filme, não hesite em ir ainda nesta semana. Vale pela obra e pela obra por trás da obra.
"Manhã de segunda-feira em Yokohama, noite de domingo em Uberaba, no triângulo mineiro. Enquanto a delegação brasileira voltava da farra e preparava as malas para deixar o Japão, Chico Xavier iniciava também sua última viagem. Vivo, o médium mais famoso do Brasil anunciou seu desejo de morrer em um dia em que o País estivesse em festa. No dia 30 de junho, como se quisesse aproveitar a oportunidade, Chico Xavier quis saber o resultado da Copa e manteve-se sereno o resto do dia. Percorreu cada ambiente de sua casa, visitou todas as salas da Casa da Prece – o centro onde promovia sessões de psicografia, a escrita de mensagens ditadas por espíritos –, e se recolheu logo após o jantar. Em menos de dez minutos, uma parada cardíaca selou sua trajetória neste planeta. Como dizem os espíritas, Chico Xavier desencarnou, aos 92 anos, para permanecer em espírito entre os compatriotas."

segunda-feira, 12 de abril de 2010

A humildade é imbatível

Contribuição de Luiz Felipe Pondé ao Tudo Cabe.
O parágrafo faz parte do artigo Mrs. Dalloway, publicado por ele na Folha de S. Paulo de hoje (12 de abril).


"A possibilidade de caminhar pelo deserto, como me disse certa feita o escritor israelense Amós Oz, refaz a alma porque vemos nosso rosto refletido na poeira. O deserto nos ensina a humildade, e a humildade é sempre imbatível. Humildade nada tem a ver com humilhação, mas, ao contrário, humildade fala da consciência de que somos efêmeros como o vento. E só como efêmeros que podemos perceber a dádiva que é respirar."

domingo, 11 de abril de 2010

Disciplina e método

Ontem decidi fazer um pavê. Escolhi a receita, comprei os ingredientes, quebrei "grosseiramente" as amêndoas (seguindo as instruções) e até usei um jogo de medidas para traduzir "meia xícara de chá" e "uma colher de sopa". Não rolou. Meu pavê virou uma esquadra de biscoitos flutuando em um oceano de chocolate. Isso depois de empelotar o amido de milho (maizena) e constatar que a calda que deveria umedecer as bolachas não deu sequer para metade do pacote.
Dormi frustrado, combalido com o fato de jamais ter feito uma sobremesa que desse certo. Adoro cozinhar e costumo mandar bem na maioria dos pratos que preparo: todos salgados. Já entre os doces, nunca consegui me entender com bolos, tortas e pavês. Falta-me disciplina, acho. Irrita-me não poder abrir o forno enquanto o bolo assa para testar-lhe o ponto. Nem cortar um pedaço, uma fatia, para saber se o tempero está bom.
Doces exigem obediência e método, uma certa obsessão com a qual não estou habituado. Gosto do "jeitinho" das woks, dos legumes salteados, do molho borbulhante em que posso a qualquer momento adicionar mais um ramo de salsa ou girar três vezes o moedor de pimenta. Gosto da "gestão participativa" das grelhas, governo democrático em que se pode espetar a carne, fatiar a carne, virar a carne, aproximá-la ou afastá-la das brasas, adicionar sal grosso (chimichurri?) conforme as conclusões empíricas obtidas in loco. Gastronomia baseada em evidências.
Fazer doce, ao contrário, é alquimia, bruxaria das brabas. Vinte gramas disso, quarenta mililitros daquilo. Pata de gafanhoto, unha de morcego, pêlo de chinchila. Fusão de elementos químicos a produzir algo novo, totalmente diverso do que se tinha a princípio. Calda que enrijesce ao esfriar, massa que dobra de tamanho em altas temperaturas.
Sobremesas exigem precisão. Este é o ponto. Uma precisão que, submetida às garras de um leigo como eu, impede qualquer hipótese de criação, afasta qualquer possibilidade de improviso. Fazer doce é preciso, viver não é preciso. Ainda bem que São Paulo tem uma porção de confeitarias.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Insegurança

Ela está insegura, com medo que eu mude de ideia.
Eu estou inseguro, com medo de mudar de ideia.

Em outras palavras, ela não confia em mim.
E eu não confio em mim.

Mas esta fase está quase passando.
Quase passando.
Passando.

domingo, 4 de abril de 2010

Próxima parada: Jaçanã

Adoniran Barbosa completaria 100 anos daqui a quatro meses. Inspirados pela efeméride, nós da Época São Paulo decidimos homenageá-lo com uma dessas reportagens de memória que, de uns tempos para cá, tenho adorado fazer. Primeiro, escrevi sobre os tempos áureos da Cinelândia Paulistana, quando o pessoal tinha de vestir terno e gravata (ou vestidos longos) para entrar no Cine Marrocos, no Art-Palácio, no Ipiranga e no Marabá, entre outras mais de vinte salas instaladas no centro da cidade entre os anos 1940 e 1950. Em janeiro, emplaquei uma grande matéria sobre a prisão do Lula, em 1980, reconstituindo a greve dos metalúrgicos do ABC e os 30 dias em que o atual Presidente permaneceu encarcerado no Dops. Desta vez, o recorte escolhido foi narrar os bastidores da composição e da primeira gravação, em 1964, do samba "Trem das Onze", a mais conhecida música de Adoniran e, provavelmente, a que melhor representa São Paulo.


Escrita por um paulista de Valinhos e impressa pelo conjunto vocal Demônios da Garoa em um LP da Chantecler, "Trem das Onze" estourou no Rio de Janeiro em fevereiro de 1965, arrebatando o troféu de música mais executada do Carnaval daquele ano, quando a capital fluminense comemorava 400 anos. De lá, alcançou projeção nacional e serviu para enterrar, com o perdão do trocadilho, a pecha de "túmulo do samba" atribuída a São Paulo por Vinícius de Moraes. Os dois primeiros parágrafos estão reproduzidos a seguir. Clique aqui para ler o texto na íntegra, que se estende por três páginas (observe a navegação no pé da página inicial), conferir uma entrevista em vídeo com os Demônios e ouvir trechos de dez sambas nos quais Adoniran faz referência a ruas e bairros da capital.


"Caixinha de fósforos nas mãos, Adoniran aproveitava a viagem para compor. Os versos surgiam entre uma estação e outra, ritmados pela cadência do vagão. Especialista em criar tipos urbanos, o artista, nascido em Valinhos em 6 de agosto de 1910, tirava samba dos trilhos. E traduzia, na nova música, a história de um rapaz que tinha de deixar a namorada sozinha para voltar para casa e cuidar de sua mãe. “Se eu perder esse trem, que sai agora às 11 horas, só amanhã de manhã.” Um dos bairros atravessados pela ferrovia acabou entrando na letra por acaso. Era preciso encontrar uma rima. “Manhã... manhã... Jaçanã! Achei bonito o nome”, confessou Adoniran em uma entrevista de 1974, dez anos depois do lançamento da canção que é a cara de São Paulo.
Adoniran barbosa faria 100 anos em agosto. E ficaria todo prosa ao saber que “Trem das Onze” ainda ocupa lugar de destaque na predileção dos paulistanos. Toda terça-feira, uma centena de pessoas vai ao Bar Brahma assistir aos Demônios da Garoa, que sempre encerram o show com seu samba mais famoso. Sentado em uma das mesas, Adoniran abriria um sorriso, pediria um cigarro “emprestado” (para fumar na calçada, é claro), ajeitaria a gravata-borboleta e, no repique da inseparável caixinha de fósforos, cantaria com a plateia. Em tempos de Beyoncé e “Rebolation”, ele descobriria que seus versos continuam reverenciados como um hino. Seis anos atrás, por exemplo, os 450 anos de São Paulo inspiraram uma campanha da TV Globo para eleger a música “com a cara da cidade”. O povo escolheu “Trem das Onze”, uma senhora de 40 anos que, até então, já tinha sido gravada em francês, espanhol, italiano e hebraico."