sábado, 27 de março de 2010

Procura-se cão-guia


O amor desaprendeu a tatear o chão com a pontinha da bengala.

terça-feira, 23 de março de 2010

Para que serve o dedinho?

Dez dias com um dedo quebrado. Justamente o dedinho, o menor de todos, bem ali no meu pé esquerdo. Dez dias com o pé enfaixado, sem colocar sapato ou tênis, desviando das pedras e dos móveis com o mesmo cuidado que têm as meninas quando acabam de fazer as unhas. Para tomar banho, calço um saco plástico, prendo com um elástico e pronto. Dez dias com preguiça de tomar banho...
Irritado com tanta restrição de movimento, sem poder dirigir nem andar longas distâncias, lancei no Facebook uma enquete para descobrir qual a serventia do dedinho. Minha desconfiança inicial, uma espécie de teoria que eu buscava comprovar, era de que o dedinho só serve mesmo para topar na quina da cama (principalmente quando a gente chega da balada). E para quebrar, é claro, mesmo em uma situação tão ridícula quanto a minha, após um escorregão na banheira. Lancei a pergunta e um amigo me abriu os olhos. "Pense que talvez seja algo que te equilibra e te derruba, dependendo do teu mundo", escreveu Pucci, um jovem psicólogo que, às vezes, diz coisas com sentido.
Pus-me a pensar no assunto. Poucas coisas têm tamanho poder, de nos equilibrar ou derrubar, conforme a ocasião. E jamais imaginei que isso pudesse vir de algo tão insignificante quanto um dedinho do pé. O amor, sim, é coisa que tem esse dom. O trabalho, talvez. O uísque, diria um amigo meu. Passei a lidar com meu dedo quebrado como se ele fosse uma mulher, a um só tempo melindrosa e graciosa: uma ausência inseparável ou uma presença distante, pronta para me equilibrar ou derrubar conforme meu comportamento. Uma mulher implicante, cheia de manias e exigências, mas que merece meus melhores cuidados. Uma mulher que abusa da minha paciência, que me prende e persegue, mas que é parte de mim como a palheta no bocal do trompete. Gosto mesmo quando ela me equilibra, embora haja sempre a hipótese de ser derrubado por ela.
Tomara que meu dedinho fique bom logo.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Um poste no caminho

Pesquisa CNI/Ibope divulgada hoje coloca Serra com 35% dos votos e Dilma com 30%. Finalmente, a disputa eleitoral começa a esquentar, prometendo boas derrapagens e alguns acidentes no meio do caminho. Faz lembrar os melhores momentos de Senna e Prost - embora não dê para saber quem é o Senna e quem é o Prost na corrida que ora se apresenta. Os carros ainda estão longe da reta de chegada, mas já dá para sentir a catimba e as armadilhas que um reserva para o outro.

Intenção de voto estimulada para Presidente (CNI/Ibope)
Sabe quando um carro de corrida aproveita o vácuo para pegar embalo na cola do adversário? Numa pesquisa eleitoral, o mesmo princípio ganha o nome de empate técnico. Cinco pontos percentuais atrás de Serra, a candidata do presidente Lula ainda não pode se considerar empatada com o líder da oposição (a pesquisa tem margem de erro de dois pontos para baixo e para cima). Mas ninguém duvida que o empate deve pintar em breve. Por enquanto, os números do Ibope ratificam o resultado divulgado recentemente pelo CNT/Sensus, cuja pesquisa dava seis pontos de vantagem para o governador paulista. E ratificam, também, o caráter plebiscitário, com jeitão de referendo, esperado para a eleição deste ano. Os índices do voto espontâneo, etapa da pesquisa em que o entrevistado revela seu candidato sem ver a lista de nomes, são ainda mais surpreendentes no que se refere ao desempenho da ministra da Casa Civil. Pela primeira vez, ela foi mais lembrada do que o concorrente mais próximo:

Intenção de voto espontânea para Presidente (CNI/Ibope)
Mais uma vez, Luiz Inácio Lula da Silva aparece no topo - um detalhe que não diz muito diante do histórico brasileiro de transmissão de votos, mas que indica os píncaros a que Dilma pode chegar, dependendo de sua autonomia de voo. Autonomia, no caso, está longe de ser a qualidade mais forte da candidata. Pelo menos é assim que a imprensa e o próprio Partido dos Trabalhadores têm buscado caracterizá-la, talvez de maneira proposital, induzida, como estratégia para fazer colar a imagem de continuadora mecânica: uma espécie de Lula de saias que celebrará a missa conforme a cartilha de seu mestre. "Com Dilma, pelo caminho que Lula nos ensinou", dizia um painel gigantesco fixado ao fundo da tribuna que confirmou a candidatura da ministra no mais recente congresso nacional do PT. Episódios como esse ajudam a disseminar a ideia de uma candidata sem sal, sem visão e sem projetos. Uma sombra fadada ao fracasso como foram Luiz Antonio Fleury Filho (sucessor de Orestes Quércia no governo do Estado que acabou marcado pelo massacre de 111 detentos na penitenciária do Carandiru) e Celso Pitta (prefeito de São Paulo conhecido pelo escândalo dos precatórios e outras denúncias de corrupção). Até outubro, tudo indica que muito falatório será gasto para dirimir essa dúvida: a situação tentando mostrar que Dilma tem estofo e história; a oposição tentando tachá-la de poste - como bem abordou reportagem de capa da revista Época. Do alto de seus 83% de aprovação, Lula acompanha a briga com ar confiante, certo de que a (sua) esperança vencerá o medo (de Serra).

Aprovação do Presidente Lula (CNI/Ibope)
Até agora, o candidato do PSDB não deslanchou. Nem assumiu a candidatura, apesar de reafirmar nos bastidores seu compromisso com a tarefa. A essa altura do championship, trocar a disputa federal pela reeleição estadual seria uma espécie de suicídio político, coisa que ele não fará. O noticiário tem batido na tecla de que ele só espera o lançamento do novo PAC para se lançar, uma estratégia para que seu anúncio não seja ofuscado pela oponente mais forte. Agora, se Lula vencer o desafio de colar sua imagem na de Dilma, como já parece ocorrer, será preciso um golpe de sorte para que nada ofusque seu esperado anúncio. Especialista em emplacar axiomas nas manchetes dos jornais, ao defender o regime castrista ou apresentar ao planeta um inédito "vírus da Paz" (que ele teria contraído no útero materno), só mesmo um acordo de cavalheiros firmado com a cúpula do PSDB poderá conter, por um dia ou dois, a incontinência verbal de "Santo Lula". Aguardaremos.

domingo, 14 de março de 2010

Sabático

Sou um cara meio antiquado. Careta, talvez. Um homem de trinta anos que dorme de pijama, curte João Gilberto, chama milkybar de "lolo" e nunca tomou energético. Os tons grisalhos se estendem também a meus livros e autores preferidos, irremediavelmente imersos em uma fina camada de poeira (como eu).


Embora recorra com certa frequência a best-sellers contemporâneos - e minha biblioteca esteja cheia de anjos, demônios e caçadores de pipas - não há labradores nem vampiros capazes de superar, na minha retrógrada predileção, os desajustados de Rosa, os funcionários públicos de Machado e as deliciosas amantes de Jorge Amado.
Sou um conservador apaixonado por livros, daqueles que têm "o olho maior que a barriga", adquirem mais do que conseguirão consumir pelo resto da vida e têm enorme dificuldade em se desfazer deles. Minha casa, aliás, está cada vez menor por conta disso. Gosto, também, de vasculhar o íntimo desses livros e autores, entender o contexto em que as obras foram escritas, verificar o que a crítica publicou na época da primeira edição, saber quem era casado, quem era homossexual, quem flertava com os russos, quem mantinha relações espúrias com a ditadura de Getúlio. Escritores são, direta ou indiretamente, cronistas por excelência de seu tempo. Há os jornalistas, é claro. Mas nenhum de nós tem o hábito de folhear, numa manhã qualquer de quinta-feira, um exemplar da Folha da Manhã ou da Província de São Paulo prensado em 1914, embora qualquer um possa esticar o braço e alcançar, na prateleira, um exemplar de Quincas Borba, lançado de 1891.
Antiquado que sou, tenho alguma reserva ao pensar em livros digitais. Nem o nome desses aparelhinhos eu guardo. Foi a Amazon que lançou, recentemente, como chama mesmo? A Apple respondeu em seguida com uma plataforma semelhante, deus do céu, qual o nome? Você, leitor, deve saber melhor do que eu. O fato é que ainda não peguei nenhum deles na mão. Curiosidade não me falta. Uma curiosidade descrente, é claro, como quem admira um quadro que jamais colocaria na própria sala. Posso estar errado. Normalmente estou. Mas, por enquanto, acho divertidíssima a ideia de levar ao banheiro uma tela dessas - para, quem sabe, ler ali um texto escrito há mais de cem anos. Ou mil.


O Estadão deste sábado trouxe um novo caderno de literatura. Na primeira edição do Sabático, o mesmo assunto foi abordado em uma entrevista com Umberto Eco, autor de um livro sobre o fim do livro. Para ele, essa fixação é conversa-mole, papo-furado de jornalista. ""O livro, para mim, é como uma colher, um machado, uma tesoura, esse tipo de objeto que, uma vez inventado, não muda jamais", disse o autor de Nome da Rosa. Da mesma forma que a serra elétrica não acabou com o machado e a televisão não liquidou o cinema, as novas tecnologias não substituirão o livro convencional na concepção de Eco. Gosto de pensar assim, com a mesma intensidade que gosto de dobrar a pontinha da folha, de grifar uma frase que me chama atenção, de ouvir João Gilberto e dormir de pijama.
O Sabático dialoga muito bem com esse público ultrapassado do qual faço parte. Gostei especialmente de uma seção publicada na página 3, que trouxe fragmentos de uma resenha publicada no mesmo Estadão em 1956. Assinada pelo mestre Antonio Candido, discorre sobre a primeira edição de Grande Sertão: Veredas, o romance corajoso e insuperável de Guimarães Rosa. "Estupenda visão do mundo e a inquietude interior elaboradas ao longo do seu fluxo de aloquencia e poesia", assinala o crítico. "(No livro) o aproveitamento literário do material observado na vida sertaneja se dá 'de dentro pra fora', no espírito, mais que na forma", acrescenta. Tomara que essa seção, "Do Suplemento Literário", seja preservada nas próximas semanas.
O escorregão do caderno, penso eu, foi manter quase inalteradas a sisudez e o marasmo do Cultura. A seção "Estante", com dicas de lançamentos, continua presa ao academicismo (e ao pedantismo) de publicações pouco palatáveis ao brasileiro comum. As duas matérias principais da edição são dedicadas a Umberto Eco, 78 anos, e ao poeta Manoel de Barros, 93, ambos entrevistados pelos jornalistas da publicação. Entre as resenhas, a maior delas é dedicada ao relançamento de um romance de Liev Tolstói concluído em 1905, quando o russo tinha 82 anos.
O que eu questiono aqui não é, evidentemente, o valor desses livros e autores, mas a opção do jornal em valorizar demasiadamente autores octagenários, já tão conhecidos, num país que carece de incentivos à nova geração. Será que só Umberto Eco, Manoel de Barros, Guimarães Rosa e Tolstói fazem boa literatura? Será que há um limite mínimo de idade para ingressar no puído mundo do novo caderno? O que eu gostaria mesmo era de saber dos bons autores que estão pintando por aí, da molecada que manda bem, e que o jornal tivesse a ousadia de dedicar espaço também a eles. Se não, quando eu comprar meu kindle - lembrei o nome! - não terei nada além de Machado e Tolstói para baixar.

Bilhete só de ida

Contribuição de Marcelo Rubens Paiva ao Tudo Cabe.
O trecho foi chupinhado do artigo "E daí que acaba", publicado no Estadão de ontem:

"Não aguento mais ouvir uma voz feminina afirmar com amargura e rancor que não quer mais casar. As muitas seguidoras de Paulo Mendes Campos acreditam que, se o amor acaba, para que começar outro.
São aquelas que se casaram de branco, no dia mais feliz de suas vidas, apaixonadas e entregues, mas que depois enfrentaram a ira de um ciumento, as neuras de um obcecado, as fraquezas de um viciado, se envolveram com famílias alheias intolerantes, conheceram a frigidez da rotina, a traição injusta seguida pelas mentiras incabíveis, e decidiram pôr um fim no sonho de eternizar aquele instante em que tudo parecia fazer sentido, as estrelas estavam próximas, em que nasceram um para o outro e morreriam grudados, na alegria e na doença.
Aquelas que já passaram por um ou dois casamentos e mergulharam no tombo da separação, em que a decepção troca de lugar com o amor, e o futuro vira pó.
Eu não aguento mais replicar: "Se o amor nos enlouquece, imagine a loucura que é ficar sem ele."
Para aquelas que dizem não acreditar mais no amor, proponho então experimentarem outros e apostarem nesse bilhete só de ida.
Uma noite de prazer acaba. Um banquete acaba. Uma viagem inesquecível acaba. O fim de semana na ilha paradisíaca, um campeonato, o dia, o ano, o gozo, um livro, um disco, um banho de banheira acabam. Não por isso, evitamos outros."

sábado, 6 de março de 2010

Johnny e a brisa

Não frequentei a boate do Hotel Plaza, em Copacabana. Tampouco conheci a Baiúca, nem a casa da Major Sertório nem o segundo endereço, na Praça Roosevelt. O piano de Johnny mesmo, eu só o conheci pelos discos. E nem faz tanto tempo assim.


Foi em 1994, um janeiro preguiçoso na Bahia, que eu ouvi falar de Johnny pela primeira vez. Tinha 14 anos na ocasião e, estendido numa rede após o almoço, empenhava os finais de tarde a decifrar a bossa-nova de dentro das páginas de Chega de saudade.
Foi Ruy Castro quem primeiro me sussurrou seu nome, estranho nome para um carioca de Vila Isabel. Mas, àquela altura, eu já havia sido apresentado a Dick Farney e Billy Blanco, brasileiros como Dorival e Ary, e não me espantaria se me dissessem que o negro Johnny nasceu Alfredo José da Silva.
Apaixonado que sou pela bossa-nova, do violão revolucionário de João Gilberto ao tac-tum-tac da bateria de Milton Banana, tive enorme satisfação em me enveredar por seus primórdios e conhecer seus precursores durante aquelas férias. E, instigado pelo livro, passei a procurar gravações de época e a me interessar pelos samba-canções dos anos 1950, com a reverência que os mestres merecem.
Senti um baque ao topar com a faixa Eu e a brisa na gravação de Márcia classificada para o festival da Record de 1967 (o mesmo festival em que Elis defendeu O cantador, Chico e MPB4 emplacaram Roda viva, Gil cantou Domingo no parque, Caetano foi de Alegria, alegria, Sérgio Ricardo quebrou seu violão ao ser vaiado por Beto bom de bola e Marília Medalha ajudou Edu Lobo a sagrar-se campeão com Ponteio).
Se a juventude que essa brisa canta
ficasse aqui comigo mais um pouco
eu poderia esquecer a dor
de ser tão só
pra ser um sonho.
Que coisa linda essa Eu e a brisa! Arrisco dizer que, na mesma tarde em que a conheci, devo ter retornado a agulha ao início da faixa umas dez vezes seguidas. Já em 1994, a música soava antiga, cafona, triste. Mas, aos meus ouvidos, era ouro sobre azul. E me dava certa nostalgia de coisas que não vivi, como se os versos fossem soprados pela própria Música, com "eme" maiúsculo: a bossa-nova em pessoa a clamar por uma segunda chance de ser ainda jovem, a pedir um pouco mais de atenção, um pouco mais de paciência.
Oh, brisa, fica, pois talvez, quem sabe,
O inesperado faça uma surpresa
e traga alguém que queira te escutar
e junto a mim
queira ficar
Johnny morreu na quinta-feira passada, dia 4, em decorrência de um câncer de próstata. Tinha 80 anos.
E eu corri para ouvir Eu e a brisa de novo.
Continua cafona. E linda. Imensamente linda.