sábado, 27 de fevereiro de 2010

Romantismo: a arte do entusiasmo

Só agora reparei no belo título da mais recente exposição do Masp, inaugurada no início de fevereiro. Romantismo: a arte do entusiasmo é uma deliciosa definição; diz muito não apenas sobre o trabalho dos mais de 60 artistas reunidos na mostra, mas também sobre a sensação arrebatadora que nos acompanha em tempos de suspiros à janela e respiração arfante.

(Passeio ao Crepúsculo, Vincent Van Gogh)

Entusiasmo. Palavra saborosa, esta. De onde vem? Parece grave, distinta, e ao mesmo tempo tão mundana, tão profana. Tem algo de ânsia nela, de ardor, de impaciência, de desejo. Ou será que apenas eu a traduzo desta forma, em razão de um vergonhoso hábito de me entusiasmar mais frequentemente com os tufões de Dioniso do que com a brisa de Apolo?

(Rosas num Copo, Jean-Baptiste-Camille Corot)

Curiosidade é coisa que sibila no ouvido da gente, você sabe, e provoca reações imprevisíveis em repórteres e afins. Resolvi dividir minhas entusiasmadas aflições com o Houaiss e descobri, veja você, que entusiasmo vem do grego enthousiasmós (peço desculpas, amigos filósofos, mas não sei grafá-la nos caracteres apropriados), que significa "transporte divino". O dicionário ainda tem a empáfia de me jogar na cara o sentido de entusiasmo: "nas religiões não cristãs da Antiguidade, estado de exaltação do espírito de quem recebe, por inspiração divina, o dom da profecia ou da adivinhação". E, por extensão, "estado de fervor, de emoção religiosa intensa" e "estado de exaltação da alma que vivencia o poeta ou o artista, arrebatado pela inspiração".

Ora, ora. E não é que tem muito de bom senso aí? O romantismo tem um pouquinho de tudo isso: inspiração, arrebatamento, exaltação da alma e do espírito, fervor e, quem diria, emoção religiosa intensa. Quanto ao dom da profecia e da adivinhação, bem, confesso que ainda não cheguei a esse estágio. Com um pouco mais de romantismo, quem sabe...

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Sinfonia da Reforma

(Título de ensaio fotográfico de Lalo de Almeida publicado na edição de fevereiro de Época São Paulo, com texto de Camilo Vannuchi)


O Teatro Municipal se transforma. Dentro e fora do prédio, é possível conferir o movimento dos artistas, concentrados nos ensaios desde julho de 2008. Nesta temporada, quem se apresenta ali são mais de 70 atores, todos eles com igual figurino: macacão e capacete.


É tempo de restaurar a fachada e os salões da mais antiga casa de espetáculos em atividade de São Paulo, inaugurada em 1911 e tombada em 1981.


Projetado por Ramos de Azevedo, o teatro preserva a imponência de um templo.


Em defesa do patrimônio, restauradores lapidam cada gesto com a gravidade que o cenário exige.


E o que eles encenam, com espátulas e pincéis, é mais que uma peça de Ibsen ou uma ária de Bizet. É o passado projetado no futuro.


Enquanto plainas e lixas substituem os violinos habituais, operários se esmeram na requalificação da casa.


Por ora envolto em pó, o prédio voltará remoçado ao roteiro da cidade.


Os nomes dos restauradores serão esquecidos. Mas o teatro permanecerá, altivo e elegante como sua instrumental arquitetura.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Uma hora a mais

A noite de hoje terá uma hora a mais.

Estado forte não é aquele que contrata 100 mil novos servidores, amplia o uso da máquina ou se esforça para criar uma megaempresa nacional de energia, mas aquele que se dá ao direito de controlar o tempo: rodar as horas pra trás, roubar um pouquinho, na paráfrase descontextualizada de Chico e Edu.


Relativizam-se os ponteiros e a rigidez dos relógios (perversões de Dali), como na cena em que o Super Homem voa bem rápido ao redor da Terra, no sentido oposto ao da rotação, para rebobinar a vida alguns segundos e salvar sua amada. Estivesse ele à frente do Executivo, poderia voltar uma hora inteirinhazinha.

A noite de hoje terá uma hora a mais.
E eu nem sei o que fazer com ela.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Agora vai

Terça-feira de carnaval, véspera de ano novo.
Agora que 2010 vai, finalmente, começar, tentarei criar uma pequena lista de intenções.
Não são promessas de ano novo, porque aprendi com nossos políticos a jamais me comprometer (até porque, na vida privada como na pública, nem tudo está ao nosso alcance).
Também não posso chamar de projetos, porque não tenho certeza se conseguirei me dedicar com afinco a todas essas coisas.
Ainda assim, e apesar de tantos senões, ficam como desejos sinceros:
1- Que eu consiga terminar um livro e começar outro, ad eternum;
2- que o cotidiano na redação seja cada vez mais gratificante e tranquilo;
3- que eu consiga chegar em casa mais cedo;
4- que o final de "Lost" não me decepcione (e que eu decepcione cada vez menos gente);
5- que as aulas de inglês me ajudem a desenferrujar a língua e a academia me ajude a desenferrujar o corpo;
6- que o sol continue se pondo, na Pompéia, com o mesmo tom de jerimum de hoje;
7- que eu continue dando pulos de alegria a cada boa xícara de café e a cada colherada de pudim;
8- que haja sempre à mão um disco do Chico ou do Tom;
10- que Aline e eu possamos reconquistar um ao outro, com paciência e temperança, e encontrar novamente paixão no amor que sentimos. Porque sentimos.
Se você tiver alguma sugestão de outros desejos que eu também possa chamar de meus, manda aí que a gente adiciona.
E feliz ano novo pra você.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Capital da esperança

Beija-flor no Rio, Tom Maior em São Paulo. Duas belas escolas irmanadas no tema escolhido para o carnaval deste ano: os 50 anos da inauguração de Brasília. Sonho de Juscelino, transposto para o papel pela lapiseira de Lúcio e ornamentado com a arte curvilínea de Oscar, Brasília é Atlântida onírica: dama do cerrado encravada no Planalto, construída por candangos da planície para representar um projeto de nação, consagrar a coragem criativa do homem brasileiro e apontar o futuro. Capital da esperança, conforme o axioma reproduzido nos sambas-enredos das duas escolas. "Orgulho, patrimônio mundial", comemora a letra da Beija-flor (imagem do desfile na foto abaixo). "A imagem da modernidade", celebra um verso da Tom Maior.


O pesar diante da real vocação de Brasília, aquela que se verifica todos os dias, se avoluma ao toque dos surdos e tamborins. Passados 50 anos, Brasília não confirmou as expectativas nela depositadas, nem deve confirmar tão cedo. É triste, para um brasileiro que comparece às urnas e admira o desenho daquela cidade, acompanhar a evolução de tantas alegorias, cantarolar o samba diante da televisão e registrar a cadência de belas cabrochas quando um governador permanece preso, com habbeas corpus negado, e o vice não tem legitimidade sequer para assumir o posto. É triste aguardar um cinquentenário desses quando maços de dinheiro são distribuídos por bolsos e roupas, as mais diversas, com a desenvoltura de quem parece entender do riscado. É triste observar a capital da esperança assim, tão jururu.
Que esse inferno astral termine logo.

Parte

Parte de mim que me aquece
e agasalha.
Parte de mim e me esquece,
espalha-se.

Parte que tudo reparte,
que é parte ciência
e outra parte arte.

Parte que me dá suporte,
que é sensível e forte,
que me estende a mão
e me acolhe em parte.

Parte que me faz a corte
e me desfaz em cortes.

Parte que é meu sul e norte
e me desorienta.
Parte mais sincera e doce
que se vai no vento
e me faz amar-te.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Estio

Contribuição de Guimarães Rosa ao Tudo Cabe, em homenagem à trégua oferecida por São Pedro. O trecho está publicado no conto A Hora e Vez de Augusto Matraga, do livro Sagarana (1946):


"Mas, afinal, as chuvas cessaram, e deu uma manhã em que Nhô Augusto saiu para o terreiro e desconheceu o mundo: um sol, talqualzinho a bola de enxofre do fundo do pote, marinhava céu acima, num azul de água sem praias, com luz jogada de um para o outro lado, e um desperdício de verdes cá em baixo - a manhã mais bonita que ele já pudera ver."

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Devagar e sempre

Parece que o país está melhorando. Timidamente, é verdade, e a despeito das catástrofes que a gente é obrigado a engolir todos os dias na hora do noticiário. Mas dá só uma espiada nos números apresentados pela pesquisa CNT/Sensus divulgada nesta semana. Duas mil pessoas foram entrevistadas entre 25 e 29 de janeiro, em 136 municípios de 24 unidades da federação, sobre sua percepção em relação a cinco grandes temas: emprego, renda, saúde, educação e segurança pública. Tinham de responder, para cada assunto, se achavam que, nos últimos seis meses, as coisas haviam melhorado, piorado ou continuado na mesma. Em seguida, foram convidadas a dizer o que imaginam que deve acontecer no próximo semestre. O resultado foi que, cruzando-se as respostas dadas em relação às cinco variáveis, 55% das pessoas disseram acreditar que, no geral, a coisa está melhor do que antes (a média mais positiva alcançada pela enquete desde abril de 2007). Já a expectativa de que tudo vai melhorar ainda mais nos próximos seis meses congregou 74% dos entrevistados.
Emprego e educação foram os dois setores com o melhor desempenho. A situação do emprego melhorou na percepção de 53,6% das pessoas e piorou para 17,6%. Já a educação foi aprovada por 47,1% da população e reprovada por 23,3%. Saúde e segurança pública, no outro extremo, continuam sendo nossos calcanhares de aquiles (o direito e o esquerdo). Em ambas, a sensação de piora supera a sensação de melhora.
O que não chega a ser novidade é a (altíssima) popularidade do presidente. Ainda segundo a CNT/Sensus, seu governo é avaliado positivamente por 71,4% da população e negativamente por 5,8% (os demais o consideram regular ou não opinaram). Já o desempenho de Lula à frente do cargo é aprovado por 81,7% e desaprovado por 13,9%.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

"A população que fique tranquila"

A reportagem de capa de Época São Paulo deste mês, nas bancas desde o último sábado, faz uma análise dos tropeços administrativos verificados em 2009 e dos mais recentes pronunciamentos, algo desconexos, registrados pelo prefeito Gilberto Kassab diante do caos em que a cidade se meteu no janeiro mais chuvoso dos últimos 77 anos. O texto é assinado por mim. Promovemos, em oito páginas, um generoso cruzamento de dados que nos permite concluir que faz tudo parte do mesmo pacote: o descontentamento da população em relação à cidade, os equívocos do orçamento aprovado para 2010 pela Câmara, a queda de popularidade do prefeito e, é claro, a previsão de gastos recordes em publicidade oficial da Prefeitura para este ano. A seguir, a imagem da capa e o primeiro parágrafo da matéria:

"Tradicionalmente conhecido como um período de pouca agitação - com estudantes em férias, Legislativo em recesso e 20% dos carros afastados das ruas -, janeiro foi um mês trovejante em São Paulo. Até o dia 25, a cidade não vivera nem sequer dois dias consecutivos sem alagamentos. O maior dilúvio do ano, na manhã do dia 21, inundou 120 pontos, de acordo com o Centro de Gerenciamento de Emergências, e causou a morte, apenas na capital, de pelo menos quatro pessoas. O Rio Tietê transbordou e, no Jardim Romano (Zona Leste), onde os moradores festejavam o terceiro dia com os pés secos após 40 sob as águas, dezenas de casas voltaram a submergir. Também inundado, o túnel Tribunal de Justiça (Zona Sul) sofreu interrupção de tráfego por 38 horas devido a falhas no sistema de drenagem. Enquanto funcionários da Defesa Civil reviravam entulhos e milhares de pessoas enfileiravam-se em 111 quilômetros de congestionamento, o prefeito Gilberto Kassab afirmou: "A população que fique tranquila. Os recursos têm sido usados da melhor maneira possível, e vai continuar sendo assim."